É o mercado, estúpido. Ou é amor?
Meu texto sobre a SP-Arte publicado nesta quarta na “Ilustrada” causou reações mistas no mundo da arte. Ouvi elogios e também muitos ataques à reportagem que mostrava como a feira, que gera quase R$ 300 milhões em negócios, pediu recursos do governo para financiar suas operações, como faz quase toda iniciativa cultural no país. Há quem defenda mesmo que um evento comercial desse porte tenha recursos incentivados. Muitos também apontaram que a prática de trazer a uma feira obras já vendidas, que divide galeristas brasileiros, é supercomum em todas as feiras do mundo. Ou seja, quando é dada a largada, todas as cartas podem já estar marcadas.
Minha opinião é que uma feira que cobra R$ 40 o ingresso não deve mesmo se beneficiar desse tipo de incentivo. Mas sou a favor que as obras de arte no país tenham tributação menor, o que só ajudaria a trazer trabalhos de peso para os museus e coleções do país, às vezes muito capengas. Só não acho que o mecanismo encontrado para isso até aqui, a simples isenção do ICMS para as vendas só durante a feira, seja o melhor meio de reduzir nossa distância dos grandes centros da arte. Uma revisão geral das alíquotas é necessária se o Brasil quiser, de fato, continuar crescendo nessa esfera. Também acredito que é isso que pode pôr fim à sonegação de impostos, ao contrabando de obras e ao uso do mercado de arte como meio de lavagem de dinheiro –tornar nossa tributação equiparável ao dos países com mercados de arte mais saudáveis ajudaria a tirar a suspeita que paira sobre muitas operações nesse meio e tornaria tudo mais transparente.
É inquestionável a importância de uma feira como a SP-Arte para o circuito artístico do país. Ela gera o lucro que muitos galeristas depois podem investir nos seus artistas, mas não é uma exposição nem uma plataforma de formação de gosto. Serve para turbinar o mercado. Quando argumentei que uma Bienal de São Paulo não é a mesma coisa que a feira, um evento de mercado, ouvi de uma importante galerista que a Bienal só existe por causa do mercado. Tudo é mercado, de Veneza a São Paulo. Não sou ingênuo a ponto de achar que não. Mas que bom que haja incentivo e patrocínios robustos para manter de pé as mostras institucionais que, sim, formam público e gostos no país.
Lá pelas tantas, com as luzes do pavilhão já apagando ontem à noite, tive uma conversa com duas pessoas de uma importante galeria da cidade. Não vou identificar os personagens, mas eles sabem quem são e que estou aberto a fazer uma entrevista detalhada e às claras sobre isso quando quiserem. O que me incomodou foi um comentário. Fui acusado de não gostar de arte porque quando publico uma reportagem apontando o “lado negro” desse sistema estou ajudando a sepultar as artes visuais no país. Me perguntaram por que escrever essas coisas se eu amo a arte. “Você não ama a arte?”
Essa pergunta ficou martelando na minha cabeça. Faz quase dez anos que toda a minha vida profissional gira em torno das artes visuais. Foi estranho tentar responder essa questão. É claro que eu amo arte, ou não estaria trabalhando 12 horas por dia desde que saí da universidade para tratar desse assunto, ver exposições, conversar com artistas e escrever reportagens, críticas e ensaios. Aliás, voltei à universidade para continuar estudando esse assunto e pretendo estudar até o fim da vida, porque arte é sim uma paixão.
Mas é um raciocínio meio torpe pensar que pelo amor à arte tenhamos que fazer vista grossa às “falcatruas” ou ao “lado negro” desse meio. É em defesa da arte que todos devemos lutar por um sistema mais transparente, menos ilusório e menos injusto, muitas vezes com quem está na base de tudo, que são os artistas. Não haveria mercado nem crítica sem eles e muitas vezes são eles quem menos ganham nessas operações de mercado gigantescas. Acontece que ali, naquele cenário de fim de festa, ouvir isso me entristeceu. O que significa, em última instância, amor à arte?
Isso me fez lembrar uma história que Adriano Pedrosa conta sobre Leonilson. Quando o artista expôs e vendeu o bordado “Voilà Mon Coeur”, na galeria Luisa Strina, em 1989, o crítico perguntou como era possível que ele vendesse seu coração daquele jeito –“voilà mon coeur” é francês para “aqui está meu coração”. Leonilson ficou contrariado. Se sua obra é mesmo uma extensão de seu corpo, como gostava de falar, não podia de fato deixar que ela se tornasse objeto de uma transação comercial. A venda foi anulada, e Leonilson despachou o trabalho pelo correio para o crítico.
Não espero esse gesto de ninguém, embora ame algumas obras da mesma forma que amo a figura de muitos artistas. Estar em contato com uma obra de arte às vezes causa mesmo esse enlevo, esse sentimento inexplicável, talvez uma ascese meio divina. Quando me diziam ali que eu não amo arte, senti como se estivesse sendo excomungado de uma igreja. Já escrevi que muitas vezes vejo a arte substituindo o papel da religião na vida contemporânea. Acreditamos nela por não acreditar em mais nada. Há coisas que colocamos num pedestal pela simples presença ou beleza de suas formas e aquilo, de alguma forma, é reconfortante como uma missa ou meditação.
Mas o perigo de toda religião é despertar o fundamentalismo. Até que ponto o mercado de arte, crucial para a existência da arte, não pode também cegar seus agentes? E entre esses agentes estou me incluindo, já que todos, do crítico ao artista, fazemos parte desse sistema. Amor à arte pode equivaler mesmo a fechar os olhos para os males necessários desse mundinho? Ou devemos amar a arte na solidão do museu ou no desespero das horas de tristeza sem pensar nas condições ao redor da arte que tanto amamos?