Randerson Romualdo Cordeiro quer saber quanto vale a sua imagem
Na “Ilustrada” desta quinta, meu colega Chico Felitti publicou uma curiosa história. Um dos garotos num retrato ultracolorido do norte-americano Kehinde Wiley não é só uma imagem. Ele tem nome, profissão e endereço. Randerson Romualdo Cordeiro também não esquece os R$ 150 que ganhou quando posou para que o artista fizesse uma tela avaliada agora em mais de R$ 100 mil e que está exposta no Brooklyn Museum, em Nova York. Isso me fez lembrar as prostitutas e mendigos que Caravaggio vestiu de santo em Roma no século 17, imagens da iconografia religiosa que se tornaram um dos maiores tesouros da história da arte. Eles também não devem ter recebido muito pela sessão, talvez um prato de comida.
Mas Caravaggio, que morreu doente, alguns dizem delirando e fugindo depois de ter matado um homem, ou pelo menos corre assim a lenda, não se tornou uma celebridade do mundo da arte da mesma maneira que Wiley, o jovem artista americano hoje sinônimo do cool na nova safra de criadores de seu país. Na última década, ele despontou no circuito com imagens de cores estridentes, panos de fundo lisérgicos e –o mais importante– personagens sempre negros em primeiríssimo plano, fazendo pose de herói. Em tempos de escândalos envolvendo o assassinato de jovens negros em Ferguson e Baltimore, as imagens de Wiley ganham ainda mais ressonância.
Não, é claro, sem uma chave de ironia. Essa América alegórica, platinada e colorida de Wiley em nada lembra as feridas expostas de uma nação que, como o Brasil, ainda não fez as pazes com seu passado brutal de escravidão e discriminação racial. Wiley se tornou um artista celebrado, talvez mais do que outros negros de uma linha também ativista que despontaram no país como Theaster Gates e Rashid Johnson, porque soube juntar duas pontas de um espectro que não costumam se frequentar –o ativismo político e um formalismo delirante sem medo de ser cafona ou kitsch.
Aliás, há muito se perdeu o medo, na América e no mundo, de ser cafona ou kitsch. No campo das artes visuais, basta olhar para o time de qualquer galeria respeitada que haverá uma cota no elenco para nomes de vertente ultracolorida, carnavalesca, popozuda e faiscante. Wiley fisgou o mercado e a crítica pelos olhos e pelo fígado. Está certo. E prometeu que ia mandar um pôster com a imagem da obra a Cordeiro, que trabalha como técnico de telefones no Rio e mora numa quitinete no morro do Vidigal. Sobrevivendo com o salário de R$ 1.200 e enfrentando a violência das favelas no rastro das UPPs, o garoto não deixa de ser um herói como quer Wiley.
Outros retratados do artista não estão em situação muito melhor. Wiley gosta de dar um banho de loja em personagens da periferia do mundo, equacionando a extravagância à volta por cima numa sociedade de consumo desenfreado. Não deixa de estar em sintonia com uma onda que varreu a cultura pop, que se apropriou da cultura negra pela fetichização do corpo africano, reavivando estereótipos do trabalhador braçal viril e bem dotado para os homens e plasmando as mulheres sempre como mulatas fogosas –do “twerk” que dizem que Miley Cyrus copiou de dançarinas negras à bunda descomunal de Nicki Minaj em pérolas como “Anaconda”.
Numa colonização ao contrário, Wiley também sabota a história da arte roubando poses clássicas de imagens de movimentos europeus, como o romantismo, o barroco e o impressionismo, e trocando cortesãs seminuas ou heróis de guerra por rapazes de cueca à mostra e trajes esportivos que parecem ter saído de um clipe de gangsta rap ou de qualquer comercial da Nike. Mas seu trabalho não teria o impacto que tem não tivesse o caminho já sido pavimentado por outro mestre da contracultura negra, no caso, Barkley Hendricks, artista também negro que ao longo dos anos 1960 e 1970 também repaginou o gueto com retratos que mais lembram editoriais da “Vogue”.
Enquanto protestos de rua chacoalham os Estados Unidos cada vez que um jovem rapaz negro é assassinado nas mãos da polícia sem muita cerimônia, imagens de negros habitando uma elite plástica e fantástica, como querem Wiley e Hendricks, ganham contornos cada vez mais potentes num momento em que o reinado de Obama caminha para o fim com o triste saldo de que pouca coisa mudou para os negros séculos depois do fim da escravidão.