Do frevo ao fervo, o drag invadiu a arte
Durante o dia, Ryan dança frevo para turistas nas ruas de Olinda, em Pernambuco. À noite, ele vira a drag Alice e dança numa boate. Edson é outro bailarino da cidade histórica, entende as matrizes da dança típica do Estado, mas também dá aulas de voguing, o estilo imortalizado por Madonna e Beyoncé, em sua modalidade mais difícil —sobre salto agulha. No novo trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, quatro personagens aparecem dançando um misto de frevo com outra coreografia que define melhor suas personalidades. Todos esses garotos vivem do frevo, uma primeira geração de bailarinos profissionais de Pernambuco, e todos assumem também uma identidade feminina em pistas de dança alternativas.
Nesse primeiro trabalho audiovisual, Wagner, uma das fotógrafas mais originais da cena atual, contrapõe uma tradição que serviu de propaganda para Pernambuco à vida real desses bailarinos, em mais um capítulo de seu registro contundente das periferias brasileiras. “Esses meninos saem da favela e aprendem a dançar frevo no palco”, conta Wagner. “Tem esse trânsito com o universo da visibilidade, da cultura pop, do YouTube. Nenhum deles veio do frevo de rua, que vem da capoeira, de uma libertação ligada ao fim da escravidão. E eles dançam sem fazer distinções entre alta e baixa cultura.”
Esses dois mundos, aliás, sempre estiveram juntos na obra de Wagner, que agora trabalha ao lado do marido, Benjamin de Burca. Seus retratos dos banhistas da praia de Brasília Teimosa, na periferia do Recife, misturam o flash estourado de editoriais de moda estilo Terry Richardson ou Juergen Teller com um registro de total crueza da precariedade encontrada ali. Em sua última série, ela fotografou gente que passava pelo terminal de ônibus Cidade Tiradentes, no extremo leste de São Paulo, para criar capas de discos de mentira, cheias de delírios de riqueza e mensagens religiosas.
Mas um aspecto que salta aos olhos em “Faz Que Vai”, seu vídeo mais recente agora em exibição no Solo Shows, em São Paulo, é a diluição das fronteiras entre os gêneros. Do Eduardo que vira Tchanna, a personagem que abre o filme, a Ryan, uma drag despudorada e toda de rosa também no vídeo, todos são homens que não têm medo de ser mulher. No rastro do fenômeno do reality “RuPaul’s Drag Race”, a cultura drag tem se tornado cada vez mais visível, e as artes visuais vêm entrando com força nessa onda.
Na semana passada, Rodolpho Parigi fez sua primeira mostra na galeria Nara Roesler encarnando seu alterego feminino, a drag-replicante-ciborgue Fancy Violence. Na vitrine do espaço na avenida Europa, Fancy, o artista vestido de mulher, “levitou” diante do público num truque ilusionista. Ficou imóvel durante quase uma hora, uma espécie de diva adormecida, enquanto pessoas do lado de fora se aproximavam para entender como ele flutuava —não sei até agora como se dá o truque— e tirar selfies diante da múmia purpurinada.
Fora o espetáculo da decepção do lado de fora —Fancy Violence já se atracou com um cara musculoso, foi suspensa do teto no átrio do Centro Cultural Banco do Brasil e cantou “Vaca Profana” num show—, um dos aspectos mais curiosos de sua performance estava do lado de dentro da galeria, com pinturas não atribuídas a Rodolpho Parigi, mas a seu heterônimo. Da moldura do quadro à técnica tosca de propósito, parecia estar ali talvez a primeira manifestação de uma arte de drag, no sentido que teria sido ela, não ele, a autora das pinturas. Não são bons quadros, lembram as representações kitsch que assaltam o olhar nas feirinhas da praça da República. E abrem um debate sobre até que ponto a performance vale como tal e qual personalidade do artista seria mais legítima. É estranho reconhecer que talvez o lado mais verdadeiro de Parigi, com falhas na pincelada e total despretensão pelo produto a ser vendido, seja mesmo sua versão de salto alto e cabelão.
Enquanto isso, tenho visto com outros olhos os espetáculos que sempre inspiraram artistas como Parigi. Numa rua perto do largo do Arouche, o bar Queen, conhecido por garotos fortões que tomam banho diante da plateia, uma drag de verdade tem a mesma presença de palco que uma Fancy Violence. Num grau mais cristalino, Maryana Mercury, homenagem à cantora baiana, tem desenvoltura impressionante. Vai do deboche do stand-up a interpretações matadoras de clássicos da música pop, sem contar sua especialidade, que é dublar Daniela Mercury. No palco, pelo ritmo das tiradas, pela dança precisa e o lip synch impecável, Mercury ofusca todos. E cada performance tem um frescor que dá gosto de ver na madrugada.
Talvez seja de personagens da noite de verdade, não da “montação” com curadoria, que o mundo da arte precise mais. Nesse sentido, Rodolpho Parigi e Bárbara Wagner parecem estar em polos opostos de um espectro visual, ela com um registro contundente do hedonismo atravessado pela miséria, e ele tendo se encontrado na própria obra na pele de um heterônimo poderoso o suficiente para levar uma multidão a uma galeria nos Jardins em plena sexta-feira à noite. No meio do caminho, artistas como Maryana Mercury vão incendiando plateias nos inferninhos mais escuros da metrópole.