Um balé feito de números e tabelas
Um dos pilares da arte conceitual e do minimalismo, movimentos que ganharam força nos Estados Unidos a partir dos anos 1960 e se espalharam pelo mundo, sempre foi a ideia de reduzir a arte à sua essência. Na pintura, surgiram os monocromos, na escultura, peças feitas com precisão matemática. Nas últimas semanas, mostras em São Paulo e no Rio vêm pondo em evidência alguns mestres dessas escolas.
Na semana passada, fui ao Rio entrevistar o francês Daniel Buren, famoso por mergulhar espaços inteiros em filtros de luz e listras e que está expondo agora na galeria Nara Roesler. Nesta semana, o Itaú Cultural, em São Paulo, abriu uma mostra com obras do acervo do Instituto Inhotim, nos arredores de Belo Horizonte, entre elas uma bela seleção de trabalhos da norte-americana Channa Horwitz.
Horwitz não é muito conhecida no Brasil. Mesmo em Los Angeles, longe do epicentro do minimalismo que se firmou em Nova York, ela manteve laços estreitos com as ideias dessa escola. Entre seus trabalhos, estão matrizes e tabelas numéricas que orientam coreografias de bailarinos no espaço.
Vistos na parede, são papéis quadriculados cheios de anotações e detalhes que à primeira vista parecem cifrados. Mas quando interpretados por bailarinos, suas composições abstratas ganham presença ímpar no palco. É uma pena que só convidados puderam ver na noite de abertura da mostra a encenação das três peças da série “Poem/Opera” criada pela artista.
No palco, bailarinos executam cada um uma série de movimentos pré-programados pela artista. Cada um segue uma ordem, embora os gestos sejam sempre os mesmos. O resultado é um balé abstrato, feito de números, que se materializa no espaço pela pura beleza do movimento, sendo ao mesmo tempo uma crítica a excessos cerebrais da razão.
Desafiando o público, uma das performances, “Sonakinatography Composition III”, de 1978, parece interminável. Os oito bailarinos desenrolam longas folhas de papel com palavras que leem em ritmos alternados, seguindo o tique-taque seco de um metrônomo. Horwitz criou ali um antipoema, matemático ao extremo, mas carregado de emoção, com palavras como “triste”, “vulnerável”, “tátil”, “atormentado” e “autêntico” gritados pelos dançarinos.
Em “The Divided Person”, outra performance mostrada na abertura, bailarinas usam roupas com fragmentos de círculos e quadrados. Em determinadas posições, as formas geométricas parecem se materializar em três dimensões, como que projetadas no corpo das dançarinas, todas mulheres. Na ação, Horwitz também segue à risca a matriz que inventou.
Mas impossível não ver em quadrados e círculos estampados no corpo uma dissolução do cartesianismo mais rígido em direção a uma dimensão mais carnal da geometria. No fundo, era o que os neoconcretistas vinham fazendo no Rio mais ou menos em paralelo aos primórdios do minimalismo de Horwitz.
No primeiro andar da mostra “Do Objeto para o Mundo”, é possível ver muito próximos uns dos outros os trabalhos de Horwitz e de heróis do neoconcretismo, como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, um sinal de que a mostra não ignora essas conexões. De fato, ela parece afirmar que há mais matemática do que se imagina nos rompantes do corpo e mais carnalidade nos números que estamos acostumados a ver.