Levando os LPs da Gal para passear
Dias antes de que eu e Guilherme Genestreti entrevistássemos Gal Costa para a “Ilustrada” deste sábado, conversei com o artista Arthur Scovino sobre sua relação com ela. Desde pequeno, esse performer que despontou no circuito depois de participar da Bienal da Bahia e da última Bienal de São Paulo ouvia os discos de Gal no Rio, onde cresceu. De tanto ouvir falar da Bahia nas canções dela, ele acabou se mudando para Salvador. Numa tarde de maio, há quatro anos, percebeu um alvoroço em frente à casa de Ivete Sangalo na capital baiana. Eram fãs que iam festejar o aniversário da ídola. Scovino então teve a ideia de comprar discos de Gal num sebo e infiltrar o evento.
Durante sete meses, o artista levou seus discos de Gal para passear por Salvador, pelas margens do rio São Francisco e até por São Paulo. Na última Bienal, em que montou uma espécie de casa em pleno pavilhão, ele reservou uma sala inteira para uma vitrola que tocava os discos de Gal. Leia a seguir uma entrevista com o artista que a cantora define como “um amor”.
Como surgiu essa ideia de levar os discos da Gal para passear?
As primeiras coisas que me motivaram foram as capas dos discos, a importância dos artistas que fizeram essas capas e os aspectos visuais do tropicalismo, como a capa que o Hélio Oiticica fez para o disco “Legal”. Criei um ritual. Só chamava isso de performance para conseguir encaixar em algum lugar das artes. Levava mesmo os LPs pra passear. Fazia isso sempre, mesmo se fosse à padaria ou para alguma festa ou casamento. Estava sempre com os discos na mão. A ideia era que eu criasse de acordo com o dia a dia, deixar os discos se tornarem um complemento ou extensão do meu corpo.
A ideia inicial era falar sobre a importância dessas capas, como a do Waly Salomão, para “Fa-Tal”, as do Dicinho e do Ednízio. Nos anos 1960 e 1970, tinha uma coisa muito de arte nas capas. Eram criações pensadas por artistas que estavam trabalhando para o tropicalismo. Pensei numa exposição ambulante dessas capas, como se elas voltassem a andar pelas ruas, porque fazia muito tempo que a Gal não lançava nenhum disco.
Quais você considera as mais importantes da história dela?
Tem uma emblemática do Ednízio, que fez a capa do “Índia”. E o Dicinho fez a capa do “Gal”. Ele continua vivo e trabalhando. Seu desenho é bem hippie, psicodélico, e esse é um dos discos mais difíceis de encontrar. Quando comecei a performance, era uma época que não tinha Instagram, ou pelo menos isso não era tão popular como é agora. Mas queria lembrar a dimensão da capa de um disco. Hoje o Instagram censura seios, por exemplo, mas quando eu era criança, o disco da novela “Tieta” era vendido nas lojas com uma modelo nua. Antes, os discos eram expostos em várias prateleiras como fotografias. A dimensão de 31 centímetros fazia com que a foto fosse muito mais importante que o CD. Era como visitar uma exposição.
Como se deu essa performance no início? O que acontecia?
Todos os dias eu saía com esses discos, e outros assuntos foram surgindo. Na época eu fiz um blog, e as pessoas começaram a participar desse trabalho fazendo a mesma coisa. Teve gente que me mandou fotos de Nova York, de Portugal. As pessoas levavam os discos para os pontos turísticos ou fazendo alguma coisa engraçada com eles, colocando o disco no rosto.
Fiz uma exposição em 2012 a partir disso. Conversei com a Gal pelo Facebook. A gente trocou algumas mensagens e quando a gente se viu ao vivo num show, ela pensou que eu ia levar os discos, mas não levei. A partir de agora, os discos vão andar sozinhos, porque as pessoas começaram a comprar discos e muita gente começou a levar discos aos shows dela. Ela se desfez dos discos dela, e depois dessa história todo show que ela faz tem pessoas levando discos para ela autografar. Continuando a poesia que eu fazia no blog, os LPs passeiam sozinhos, como se o trabalho continuasse com outras pessoas.
Quantos discos dela você tem hoje? Tem todos os que ela lançou?
Devo ter uns 300, 400. As pessoas agora me dão os discos. Tenho quase todos. Os que eu não tenho são os mais raros, os compactos.
De onde surgiu sua obsessão com a Gal? Por que esse interesse?
É uma coisa de musa inspiradora. Várias pessoas que veem meu trabalho falam disso, de uma musa inspiradora. Eu percebi que ela sempre esteve presente na minha vida. Pelo fato de gostar tanto da voz dela, acabei conhecendo bem cedo muito da música brasileira pelos compositores que ela gravava. Eu tinha os discos quando eu era criança. Eu sabia quais eram, quem tinha feito a capa. Não deixa de ser uma pesquisa. Tem uma coisa bem importante do início da pesquisa minha, que é me organizar a partir da arte. Ela é minha musa inspiradora, minha musa cabocla.