Briga de Marina Abramovic com Jay Z joga luz sobre a crise da performance
Na semana passada, Marina Abramovic chacoalhou o noticiário ao atacar o rapper Jay Z, que segundo ela só usou sua imagem no clipe da música “Picasso Baby” e não deu nada em troca. Para quem não sabe, esse vídeo gravado na galeria Pace, em Nova York, reuniu a nata das artes visuais e algumas estrelas do show business em torno do músico que disparava versos sobre deitar e rolar em cima de telas de Picasso, Rothko e Bacon. Abramovic contou que tinha topado entrar no projeto promocional do músico em troca de uma doação dele para o instituto de performance que ela pretende criar ao norte de Nova York, num prédio de Rem Koolhaas.
No mesmo dia, Jay Z rebateu a crítica e logo sites reproduziram o recibo da doação feita pelo rapper. A equipe de Abramovic foi obrigada a fazer uma retratação pública dizendo que ela não sabia da doação do músico. No início do ano passado, quando a performer esteve no Brasil em preparação para a mostra realizada neste ano no Sesc Pompeia, conversei com Abramovic sobre o episódio Jay Z e sua relação com as celebridades. Ela disse então estar sendo “criticada até a morte” por seu flerte com Hollywood, mas que gostava de se infiltrar nesse mundo para “plantar ideias” e conquistar novos públicos.
Seu discurso mudou. De volta a São Paulo às vésperas da abertura de sua exposição em março, Abramovic não gostou quando mais uma vez toquei no assunto celebridade. Só disse que é uma celebridade e que seus amigos são celebridades. Talvez só Jay Z tenha perdido o posto em sua entourage, mas o episódio revela também como mudou sua relação com a performance.
Abramovic sabe que o que fazia ali no meio da Pace dançando com Jay Z não seria interpretado como uma aparição bizarra no clipe de um rapper. Pelo seu histórico e por fazer de seu próprio corpo uma plataforma de sua obra, é nítido que sua presença dava um verniz artístico a algo que não passaria de mais um truque da nova indústria fonográfica, calcada às vezes mais em imagem do que na música. Na ânsia de preservar a memória da performance no instituto que está criando em Hudson, Abramovic agora faz performances por encomenda. Cobrar numa entrevista pela doação que não teria recebido é como uma estrela de cinema vir a público dizer que não recebeu o cachê e que caiu na armadilha da fama e do star system que rege Hollywood.
Também enfatiza a noção cada vez mais clara de que Abramovic está perdida. A performance hoje não tem mais o vínculo com suas origens viscerais nos anos 1970, quando ela despontou ao lado de artistas como Vito Acconci, Chris Burden, Ana Mendieta e tantos outros. Ela se deu conta disso, mas se perdeu numa viagem esotérica de pedras e cristais enquanto tenta doutrinar jovens performers com métodos que lembram jogos para quebrar o gelo em aulas de teatro. Mais do que nunca, a performer parece ausente de sua própria obra e sem querer querendo adentrou sem volta a lógica da venda de imagens que desde sempre esteve na base da indústria do entretenimento.
Enquanto Abramovic se perde, outra performer parece encontrar cada vez mais potência na lógica teatral da performance. Tania Bruguera, a artista cubana detida em Havana desde o fim do ano passado por tentar instalar microfones abertos ao público na praça de la Revolución, tentou realizar na semana passada, em paralelo ao papelão de Abramovic, uma leitura de cem horas seguidas do livro “As Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt. Não pôde concluir a ação porque agentes do governo da ilha cercaram sua casa com um canteiro de obras, fazendo um ruído ensurdecedor para afogar as palavras da artista. Na manhã deste domingo, Bruguera chegou a ser presa mais uma vez e logo levada à casa de sua mãe, longe do centro antigo da capital cubana onde o povo da arte vem se concentrando para ver a atual edição da Bienal de Havana, que expulsou Bruguera de sua lista de artistas.
Não defendo os aspectos visuais da obra de Bruguera. Mas seu teste de resistência –as cem horas de leitura– lembra a velha lógica das performances de Abramovic e joga com a decepção do público que espera ver algo acontecer, mas sabe que se levado a cabo o trabalho será a tediosa leitura de centenas de páginas. Há uma força política incontestável no ato da artista, não só pela escolha do livro de Arendt, mas pela empáfia de estender seu tempo de exposição diante da censura do regime castrista num momento em que todos os olhos na ilha se voltam para as artes visuais. Há quem veja em Bruguera uma espécie de Ai Weiwei cubana, mas o paralelo com o artista e ativista chinês para no ponto em que começa a obra dele. Talvez como personalidades, os dois tenham a mesma coragem e a convicção de enfiar o dedo nas feridas da política. Mas Bruguera, ao contrário de Weiwei, é acima de tudo uma performer. Sua obra é uma presença incômoda e poderosa.
Não estive em Havana, mas ouvindo os relatos de quem esteve lá e vendo as imagens de Bruguera, sentada de vestido preto e microfone em punho encarando o volume de Arendt, não pude deixar de me lembrar de outra performance agora em curso na Bienal de Veneza, que visitei há duas semanas. Lá, o britânico Isaac Julien está comandando uma leitura de “O Capital”, de Karl Marx, diante de uma plateia que não aguenta ver nem a leitura do prefácio. Num contexto de engrenagens financeiras balofas como o das artes plásticas, explicar mais valia e outros conceitos marxistas em tom monocórdico a visitantes de uma Bienal que tem nos Giardini até um pavilhão para seu principal patrocinador parece uma provocação um tanto boba. Julien sabe disso, mas não desistiu de teatralizar o livro que narra as origens do sistema de desigualdades que estrutura o mundo. Entre Marx, Arendt e o escândalo de Abramovic, a performance está no centro de uma encruzilhada.