Uma mesquita abalou Veneza em vão
Ofuscando até mesmo a mostra principal, a obra do artista suíço Christoph Büchel representando a Islândia na Bienal de Veneza transformou a antiga igreja católica Santa Maria della Misericordia, que há quase 50 anos já não funciona como local de culto, numa mesquita no coração da cidade italiana. Mesmo com uma população de quase 20 mil muçulmanos, Veneza não tinha um espaço desses em seu centro histórico. A obra de Büchel, embora não seja uma mesquita de verdade, tem toda a ambientação para tanto e, de fato, passou a ser frequentada por fiéis que rezavam ali voltados para Meca.
Inaugurada na primeira semana da Bienal de Veneza e fechada uma semana depois por autoridades italianas que diziam que o Icelandic Art Center, responsável pela montagem da obra, não tinha autorização oficial para operar um local de culto, a mesquita fake de Büchel esgarçou ainda mais a ferida xenófoba numa Europa que vive a ressaca dos ataques ao “Charlie Hebdo” em Paris e ainda debate a tragédia recorrente dos náufragos que morrem no Mediterrâneo tentando chegar à Itália. Sua existência abalou Veneza, mas a interdição pode ter causado ainda mais dano ao tecido social da cidade.
Büchel é um artista controverso, que já transformou uma galeria em centro de assistência social, por exemplo. Mas quando o debate em Veneza pegou fogo, decidiu se ausentar. Sua obra foi defendida e atacada por número semelhante de críticos. Estive em Veneza, mas longe do caos que sua obra causou. Enquanto há os que veem ali uma provocação necessária aos tempos atuais, há quem enxergue o episódio como fruto de um sensacionismo vazio. Talvez a leitura mais interessante é a de quem chamou o trabalho de apologia da cultura normcore, em que ali todos estariam vivendo sua vida normal, alheios ao fato de aquilo ser uma igreja transformada em mesquita.
Tudo aponta, no entanto, para um saldo negativo. Sozinho como mesquita, o trabalho só tornou mais dolorosa a ausência de um espaço de culto para os muçulmanos em Veneza. Entregaram o doce e tiraram da boca na sequência. Pela censura que se seguiu, também mostra que mesmo a Meca da arte contemporânea que é a cidade italiana em tempos de Bienal pode não estar preparada para uma arte que testa mesmo os limites além do cubo branco.
Outro ponto que o trabalho de Büchel escancara é o enorme potencial de fracasso em trabalhos que vêm se equilibrando no limiar entre performance, crítica institucional e o que se convencionou chamar nos últimos tempos de prática social, ou obras voltadas a um fim assistencialista mesmo que de modo subversivo, chamando a atenção para abusos e descasos do poder público. Esses três vetores colidem com força na obra de Büchel, que acaba desabando, ou sendo interditada, sem ter se firmado como performance além da provocação e fracassado como um projeto de real assistencialismo.