Exposição em SP celebra os meninos do Rio retratados por Alair Gomes
Não me lembro de ter visto outra abertura de exposição tão concorrida na Caixa Cultural quanto a da mostra de Alair Gomes que começou no último sábado. Era impossível andar pela galeria em alguns momentos, de tanta gente espremida diante das séries mais conhecidas do fotógrafo. Na verdade, dizer que suas séries são conhecidas é um tanto relativo. Gomes é um artista que foi descoberto pelo público bem depois de morto com uma grande exposição na Fundação Cartier, em Paris. Só nos últimos anos, no entanto, com uma sala especial dedicada a ele na Bienal de São Paulo, é que sua obra parece ter virado alvo de culto no circuito artístico nacional.
Depois da Bienal organizada há três anos por Luís Pérez-Oramas —mais uma vez um curador estrangeiro legitimando esse artista—, a revista “Zum” publicou um ensaio inédito de Gomes. Pouco mais tarde, Eder Chiodetto começou os preparativos para a mostra agora em cartaz, que resgata séries clássicas do artista, como suas “Sonatinas Four Feet” e “The Course of the Sun” e ainda revela outro ensaio até aqui desconhecido dele, uma série que fez retratando os hippies na praça da República, em São Paulo, no fim dos anos 1960. O MoMA também acaba de comprar duas de suas séries, coroando o que parece ser um momento de legitimação póstuma de Gomes.
Não há dúvida que estamos diante de um grande artista, e talvez seja até melhor dizer artista do que chamar Alair Gomes de fotógrafo. Seu trabalho em muitos aspectos transcende a fotografia. É um retrato obsessivo, de absoluto rigor plástico de um tema marginal na história da arte —a beleza do corpo masculino. Enquanto todas as vanguardas tiveram suas musas, da Vênus de Milo à “Maja Desnuda” de Goya ou à “Olympia” de Manet, os homens não tiveram o mesmo tratamento. Arrisco dizer que Gomes pode ter até inaugurado uma era de exaltação do corpo masculino, o homem como objeto de adoração quase divina, como ele sugere em seus escritos.
De sua janela em Ipanema, no Rio, Gomes fotografava os garotos que via se exercitando na praia. Suas imagens, feitas com uma teleobjetiva e depois ampliadas em seu quarto escuro caseiro, formam um painel do culto ao corpo sob o sol escaldante carioca. Não raro, ele levava essas fotografias até os rapazes na praia a fim de convencer um ou outro a subir até seu apartamento para ser retratado nu —uma ressalva à montagem agora na Caixa, que se repete quase sempre que se mostra a obra do artista, é esconder todos os nus numa salinha reservada atrás, como se fosse um canto espúrio de profanação.
Em todo caso, essa parte de sua obra que para alguns pode parecer pornográfica é um recorte essencial de sua construção poética, contrapondo a carnalidade do corpo à frieza do mármore da estatuária clássica que também fotografou. Gomes morreu estrangulado em seu apartamento, o lugar onde arquitetou toda a sua obra. Tudo indica que seu algoz era um rapaz que frequentava sua casa e que já tivesse posado para ele. O caso nunca foi esclarecido, e desde então quase toda a sua obra está guardada na Biblioteca Nacional, no Rio, o que impede que ela tenha grande circulação comercial.
Na noite de abertura da mostra, uma festa no L’Amour, simpático puteiro do centro de São Paulo, celebrou a obra de Alair Gomes, com projeções de suas fotografias nas paredes suadas em torno da pista de dança. Li muitos dos diários de Gomes, também conservados na Biblioteca Nacional, mas não me lembro de nenhuma menção dele a hábitos noturnos, boates e afins. Mas ele falava muito de seus receios e ansiedades sobre como sua obra seria vista e consumida pelo grande público. Mesmo com uma visão despudorada do corpo masculino, Gomes tinha certo pudor com a forma de mostrar seu trabalho, exigindo sempre que suas sequências fossem vistas do começo ao fim e muitas das vezes com uma música ou sinfonia específica de fundo.
Seu universo erudito não parece combinar com uma festa de filas que quase dobravam a esquina, mas acho que ele teria gostado de ver as cenas deste sábado. São Paulo, mesmo milhares de tons mais cinza que seu idílio carioca, parecia celebrar com tudo a obra de um artista que merecia ser descoberto mais cedo e só agora ensaia uma entrada no cânone da arte nacional.