E o pop volta a ser pop
Na “Ilustrada” desta terça, conto a história de como Claudio Tozzi, um dos maiores nomes da nova figuração, ou da arte pop criada no Brasil, vem sendo descoberto no exterior como um dos heróis dessa vanguarda. Enquanto exposições na Tate, em Londres, e numa série de museus nos Estados Unidos, entre eles o Walker Art Center, em Mineápolis, e o Museu de Arte da Filadélfia, se voltam para explicar o fenômeno que foi o pop global, o Brasil também vem redescobrindo esses artistas.
Essa onda começou há três anos na Pinacoteca com uma retrospectiva de Antônio Henrique Amaral, morto no ano passado. Famoso por suas pinturas de bananas, uma alegoria dos rumos do país sob o regime militar, Amaral foi um dos pilares do gênero, retomando uma figuração exuberante depois de anos em que a abstração geométrica reinava na arte brasileira. Na sequência, Marcello Nitsche teve toda a sua obra revista numa grande mostra no Sesc Pompeia.
Neste ano, a Pinacoteca do Estado deve esquentar mais esse revival em torno da pop nacional com uma mostra da coleção de Roger Wright, marcada para agosto. Wright, empresário morto há sete anos num acidente aéreo, foi um dos maiores entusiastas de obras desse movimento, tendo reunido um acervo com obras de peso de mestres do estilo, entre eles Amaral, Nitsche e Tozzi, além de Antônio Dias, Rubens Gerchman, Nelson Leirner, Maurício Nogueira Lima.
No mesmo acervo, também estão peças da fase pop de Waldemar Cordeiro, fundador do grupo Ruptura, que configurou a vertente mais ortodoxa da abstração geométrica no país, e Geraldo de Barros. Tanto Cordeiro quanto Barros fizeram obras de extremo rigor geométrico e depois experimentaram com a nova figuração. Uma retrospectiva de Barros há dois anos no Instituto Moreira Salles, no Rio, deu destaque especial a essa vertente de sua obra, que acabou merecendo menor atenção da crítica do que seus experimentos fotográficos.
Leia a seguir a íntegra da entrevista de Claudio Tozzi.
De onde vinham as imagens de seus trabalhos?
Tinha as passeatas na Maria Antonia e a gente tinha muito contato na FAU com a filosofia. Eu documentava algumas situações quando chegava a polícia. Tinha uma máquina fotográfica, que foi apreendida, uma vez quebraram, e eu peguei outra. Eram fotografias sem compromisso. Depois eu vinha para o ateliê e trabalhava as imagens reduzindo tudo à sua essência, todos os meio tons da fotografia até chegar a uma relação de fundo e figura. Às vezes elas ficavam até meio abstratas. Se você fechar o olho um pouquinho, você percebe. Eu também pegava fotos de jornais e trabalhava em cima com papel vegetal. Como tinha formação de arquiteto, eu tinha sempre um projeto. Minha atitude era essa de pensar, de construir a imagem no quadro.
A técnica era bem simples, eram materiais usados em pintura de placa mesmo em cima de eucatex. Depois eu tive contato com uma tinta que os pops americanos usavam, que era a liquitex. Ela é bem opaca e tem uma carga de pigmento muito grande, então dava uma cobertura muito bonita. E se você lava um quadro antigo, com sabão de côco, ele fica novinho. É impressionante.
Acredita que há um novo interesse pelas obras de artistas da sua geração?
A geração da gente ficou um pouco sem galeria. A gente tinha várias galerias, a galeria São Paulo, a do Paulo Figueiredo, a do Ralph Camargo, que na década de 1960 fez exposições de todos os artistas da minha geração. Depois as galerias novas contrataram artistas mais novos. Mas várias galerias ainda procuram. Tem um interesse mais histórico agora.
Você se considera influenciado pelo pop americano? Qual a diferença disso com o que ocorreu no Brasil?
Tinha uma diferença grande entre o que se fazia aqui no Brasil e nos Estados Unidos. Lá era uma sociedade onde tinha um consumismo muito grande, e a pop art era uma contestação desse consumo. No Brasil, não tinha nada disso, era outra questão. Era político, uma questão de costumes. Então toda a arte brasileira desse período tem essa relação mais com as questões que se viviam na época, que era uma repressão muito grande, a repressão política da ditadura. E ainda tinha um mercado muito pequeno, pouquíssimas pessoas que se interessavam pela arte. Não tinha uma estrutura como tem hoje. E os Estados Unidos e a Inglaterra já tinham uma tradição maior.
Foi uma assimilação, era uma coisa que acontecia no mundo. Nos Estados Unidos, o [Andy] Warhol fez uma revolução muito grande com a apropriação. É uma coisa que veio do Marcel Duchamp, você se apropria de uma linguagem existente, só que transformando ela.
Os pintores pop art que vieram para a Bienal de São Paulo em 1967 influenciaram muita gente. Surgiu essa tinta nova, a liquitex, que a gente comprava de uma aeromoça que trazia, da Varig, que trazia para a gente a tinta. Tinha [Roy] Lichtenstein, tinha toda a pop mesmo, [Andy] Warhol, Tom Wesselmann, vários outros menos conhecidos também. O que estimulou a gente foi que a gente estava num caminho que tinha uma relação com o que se fazia no mundo, embora com essa diferença que a gente estava conversando, principalmente porque a gente mexia com a figura numa relação temática com as ocorrências daqui e de lá. A grande diferença é essa, e era um trabalho até mais forte porque ele era vivo. As exposições, por exemplo, tinha muitas exposições coletivas, e aqui em São Paulo a gente fez várias exposições em sindicatos e espaços alternativos mesmo.
Como era o circuito artístico naquela época?
Era um público muito pequeno que se interessava por arte e ele cresceu muito na décadade 1980 e 1990. A gente trabalhava muito com serigrafia. A gente fazia edições e depois ia vender. Tinha a imagem do Garrincha, a gente vendia na saída do futebol a preço de custo. Existia essa visão meio purista, meio romântica, até atrasada, de tentar fazer uma coisa mais popular.
Alguns artistas também migraram para a pop, como o Maurício Nogueira Lima, que trabalhou imagens de futebol, a Marilyn, o próprio Waldemar Cordeiro, que fez o “Popcreto”, a ideia de estruturar uma obra com figuras. Depois até os primeiros trabalhos foram no computador. Já era uma semente, uma renovação de linguagem, e principalmente uma ruptura com a pintura tradicional no Brasil, que era uma pintura de cavalete, da tinta a óleo, daquela finesse de sombreamento, de claro-escuro. A gente trabalhava em geral na horizontal mesmo, em prancheta.
Além da técnica, os temas também mudaram. Você começou com celebridades e depois foi adotando símbolos cada vez mais abstratos.
Era essa tentativa de fazer uma imagem que tivesse uma leitura até meio óbvia. Mas não era um retrato do Pelé, mas uma relação de formas que construía o Pelé. Eram os ícones de massa. O Guevara era praticamente uma homenagem, era uma figura linda, um homem muito bonito, então eu fiz um paralelo. Era a imagem de um ícone e algumas cenas de fome, de luta. Eu colocava esses movimentos estudantis, operários junto à imagem do Che. O “Guevara Vivo ou Morto” é como se fosse um still de filme, uma sequência de imagens que o espectador completa.
Como surgiram os astronautas?
Quando eu fiz os astronautas, queria fazer uma relação entre o processo de produzir a obra e a tecnologia que se usava. E a tinta epóxi que eu usei ali era uma tinta de alta resistência que se usava na parte interna dos foguetes, uma superfície bem brilhante. Era uma tinta que se mistura com um catalisador, um pigmento, e é de altíssima resistência. Hoje se usa para piso em arquitetura. Era usada dentro dos foguetes. Essa tinta revestia a parte metálica.
Nos astronautas, eu via um movimento muito sereno, da ausência da gravidade, então é uma pincelada bem mais fluida, uma forma bem mais delicada. É quase que um contraste. Daí eu mudei também para essa tinta mais brilhante para os trabalhos. Era uma coisa que estava acontecendo, mas fora dessa questão, uma coisa mais alienada, mas um trabalho formal até mais elaborado.
Quando eu vi o trabalho do Lichtenstein, achei que era um caminho. Quando vi a retícula do Lichtenstein, logo incorporei ao trabalho. Eu achei uma solução gráfica perfeita para interpretar essa dilatação dos pontos da impressão. Tive uma influência muito grande. Estudei a técnica, fui pesquisar o processo de fazer. Ele usava uma máscara, e eu desenhava mesmo cada bolinha dessa com um compasso, essa era a única diferença. Às vezes sai de um rigor totalmente organizado, a bolinha sai do lugar. Era uma coisa mais artesanal.
E os parafusos?
Os parafusos viream depois do AI-5. Não tinha nem mais sentido você fazer essa imagem de fácil leitura, porque você não podia mais fazer essas exposições junto aos sindicatos. Era um elemento mais simbólico. Tinha uma repressão muito grande, mas não tinha mais essa relação grande entre todos os artistas, exposições coletivas, então o trabalho se voltou mais para o ateliê.
Todos nós artistas da década de 1960, no início da década 1970, fizemos um trabalho mais elaborado, com cores que não eram mais tão simples. Alguns incorporavam o texto à própria pintura. Fiz essa série de parafusos que era bem mais elaborada em termos de cor e composição. O trabalho que eu fiz para a Bienal de Veneza era só com a matéria. Era um período muito fértil, essa reação que os artistas tiveram principalmente os artistas plásticos a esse fechamento, essa tentativa de fazer essa imagem mais popular, mais simples de atingir o público mais amplo.
O primeiro parafuso que eu fiz apertava um cérebro. Era uma coisa bem simbólica. E eu comecei a trabalhar com as retículas também. Eu trabalhava a retícula construindo a imagem. A gente fazia cartazes, e eu comecei a aprender a produção da imagem gráfica pela indústria. São imagens que eu pegava do espaço urbano mesmo, mas é o inverso do que a indústria gráfica fazia.
As multidões também são outro lado de sua produção.
Se você ficasse perto de um quadro, você se funde com as imagens. Era uma intenção de o espectador também participar da imagem. E as outras imagens tinham um distanciamento. Em geral, as figuras eram só silhuetas. E as formas mais anônimas, que eram as multidões ligadas à resistência, não tinham uma identidade, mas existia uma forma de você tentar se identificar com a temática do quadro. Essa participação da reação do público com a obra era muito presente nessa época, um com a fusão com a própria imagem e outro com a não existência da caracterização da própria imagem. Tem o “Fotonovela”, que são só silhuetas de imagens.
Você vê semelhanças entre os protestos dos anos 1960 e as manifestações recentes?
Tem uma certa relação com a atitude criativa. Hoje essa ocupação que se faz nas ruas é mais ou menos uma atitude que a gente tinha na época, só que a situação é outra. A gente vivia numa ditadura, hoje você tem uma liberdade muito grande. Mas politicamente é a mesma atitude. É uma atitude poética. Esses movimentos são muito criativos.
Você chegou a sofrer censura ou perseguição na época?
Quando eu pintava o trabalho, eu pensava também na ocorrência, na vivência do dia a dia. Você estava correndo, fugindo, estava explodindo uma bomba ali. Eu participava do movimento estudantil e tinha aquelas prisões com as passeatas. O primeiro painel que eu fiz, o “Guevara Vivo ou Morto”, foi destruído no Salão de Brasília. Isso foi em 1968 e, depois de anos, mandaram para cá. A Secretaria de Cultura me devolveu o trabalho e eu restaurei.