Da arte de celebrar e vilipendiar Lina Bo Bardi
Nos últimos tempos, Lina Bo Bardi vem sendo redescoberta pelo meio artístico do Brasil e do mundo, inspirando mostras, livros e debates. No Masp, o resgate de seus cavaletes de vidro, que voltaram a fazer os quadros flutuar na galeria de pinturas do maior museu da América Latina, foi o gesto mais autêntico e radical da nova administração da instituição, mostrando que um olhar para o passado às vezes pode pavimentar a rota para um futuro menos cruel com a memória.
Mas a confirmação recente de que o Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, deve autorizar em breve a construção de três torres de até 28 andares no terreno ao lado do Teatro Oficina, uma das obras mais poderosas de Bo Bardi, é um tanto chocante. Talvez mais chocante seja a justificativa esfarrapada desse órgão de que o tombamento que deveria proteger o teatro na Bela Vista diz respeito só ao interior do prédio e não à preservação da vista de seu janelão de cem metros quadrados. Letras miúdas à parte, os burocratas lotados ali parecem não saber que a transparência —nunca viram a Casa de Vidro?— é um dos maiores valores que pautam as obras dessa arquiteta. A construção de um paredão de prédios colado ao Oficina será a morte de sua maior virtude, que é ser ao mesmo tempo uma rua e uma plataforma cênica aberta à cidade, penetrada pela metrópole e ao mesmo tempo deixando vazar para a rua a fúria de seus espetáculos.
Não sou do time que resiste a qualquer mudança na cidade, nem acho que tudo deve ser cristalizado como está. Mas o Oficina precisa ser preservado, quem sabe ganhando a praça externa que Bo Bardi idealizou em vida. Entendo que o espaço é também protegido pelos órgãos de defesa do patrimônio do Estado e do município de São Paulo, o que atravanca um pouco os planos do Grupo Silvio Santos de construir suas torres ali. Acontece que com o aval da esfera federal, essas entidades regionais têm poder reduzido e podem acabar cedendo.
É no mínimo paradoxal que Bo Bardi seja ao mesmo tempo celebrada e vilipendiada na mesma cidade, a São Paulo que absorveu sua obra do jeito desengonçado e atravessado que as coisas acontecem por aqui. Esse não deixa de ser mais um marco na paisagem que pode sofrer um arranhão. Evitar a construção de um paredão ali pode evitar o que já ocorre na Vila Mariana, onde um prédio gigantesco de escritórios foi construído atrás das casas que Gregori Warchavchik construiu na rua Berta, hoje quase esmagadas pelo vizinho. Pelo visto, a memória da arquitetura em São Paulo parece sobreviver só da porta para dentro, em fotografias, reproduções e resgates historicistas. Enquanto isso, empreiteiras vão reduzindo a pó pedaços da história da cidade.