Orgulho negro leva Beyoncé ao topo do mundo
Num golpe que chacoalhou a internet e o mundo, Beyoncé lançou na semana passada, pouco antes de cantar no show do intervalo do Super Bowl, o clipe da música “Formation”, single que deve liderar sua próxima turnê. No auge da fama, a artista pop dispensa apresentações. Também derruba barreiras. Antes que alguém se pergunte por que este espaço dedicado à arte contemporânea está gastando uma segunda-feira de Carnaval para falar sobre Beyoncé, um esclarecimento —o alcance atingido por “Formation” e a embalagem plástica estonteante que acompanha a música poderiam servir de exemplos para artistas contemporâneos.
Beyoncé, ao contrário de Lady Gaga, nunca se pretendeu artista. Não importa. Na história recente do pop, “Formation” pode ser considerado um divisor de águas. É das poucas canções que aliam o star power de uma diva a uma mensagem política ao mesmo tempo explícita e talhada à perfeição.
Brasil e Estados Unidos, nesse ponto, são países parecidos. O racismo impera, lá com um apartheid intencional mantido pela indústria pop, onde negros não se misturam com brancos, e aqui se ancora na crença esfarrapada de que a miscigenação levou o país a um quadro de pós-racismo.
Em plena corrida presidencial americana, Beyoncé criou um manifesto racial poderoso. Na era Obama, em que o primeiro negro ocupou a presidência do país, conflitos raciais ganharam um alto grau de visibilidade ao contrário de terem sido apaziguados. No discurso de pré-candidatos às eleições do país, em especial pela boca de Donald Trump, a xenofobia reina, daí a potência por trás de um movimento como o Black Lives Matter, uma bandeira que Beyoncé também levanta.
É nesse sentido, por um entendimento arguto do momento atravessado por seu país, que Beyoncé se distancia de mais um ato caça-níqueis de qualquer estrela da indústria fonográfica —o que ela não deixa de ser— para se tornar uma voz ultrapotente contra um quadro de injustiças, desmandos e abusos de poder contra os negros naquele país, exaltando como pode sua própria negritude.
Na arte contemporânea, nomes como Theaster Gates, Glenn Ligon, Rashid Johnson, Wangechi Mutu, e talvez todo o elenco da famosa mostra “30 Americans”, que passou por último por Detroit, já vêm afiando seus discursos contra um quadro de racismo mantido de pé mesmo na era Obama. Mas juntos todos eles não têm a menor fração do impacto provocado por uma Beyoncé.
“Formation”, tanto do ponto de vista de uma obra de arte quanto da música pop, é uma obra-prima. Não faria feio em qualquer bienal, salão ou exposição. É um painel muito bem arquitetado sobre as tensões raciais que atravessam os Estados Unidos desde sua gênese à posição de potência mundial que ocupa hoje —Beyoncé, na letra da música, exalta desde as narinas negras de Michael Jackson em sua era Jackson 5 ao fato de poder ser um dia uma Bill Gates negra.
Da coreografia que emula passos do charleston, dança celebrizada pela dançarina Josephine Baker, aos figurinos que subvertem a estética da “southern belle”, a sinhazinha sulista que aqui ressurge negra, dona do salão, o clipe de “Formation”, dirigido por Melina Matsoukas, já nasceu um clássico instantâneo. É sem dúvida a melhor coisa já feita por Beyoncé em todos os tempos, atualizando com fúria e acidez um discurso que reverbera ao longo das décadas nos escritos de Harper Lee, Ralph Ellison e Zora Neale Hurston e na música de Nina Simone, entre tantos outros.
É fato que a crítica já especula o quão verdadeiro é tudo isso. Beyoncé é rica, bonita e poderosa. Alguns questionam até se é negra o suficiente. Bobagem. Da posição que ocupa no topo da cadeia alimentícia da indústria, escancarar feridas acaba se tornando um passo compreensível na trajetória da ex-Destiny’s Child. Também é o que a destaca de um universo de mediocridade na cultura pop contemporânea, que vive uma aguda crise criativa. Desconsiderando o que veio antes e o que ainda está por vir, “Formation” sozinha é uma canção que consagra Beyoncé no topo do mundo. Ela é a artista pop mais urgente e relevante da atualidade.