Leirner, Beuys, um tabuleiro de xadrez e o éter

Silas Martí

Não podemos mais ser sonhadores. Nelson Leirner me disse isso na entrevista que fizemos sobre a reencenação de sua famosa mostra “Playgrounds”, de 1969, que começa agora no Masp. “Hoje cabe ser mais direto, mais panfletário, menos sonhador. Vejo a arte agora como um tabuleiro de xadrez em que todas as peças são iguais. Quando os lados são da mesma cor, não existe jogo.”

Essa conversa foi antes do vazamento ontem da gravação de um telefonema da presidente Dilma Rousseff ao ex-presidente Lula, episódio que convulsionou o país até a convulsão seguinte hoje pela manhã, quando Dilma deu posse a Lula como ministro da Casa Civil e logo depois um juiz anulou a nomeação. Já perdi o hábito de escrever num diário, mas se escrevesse agora diria que a sensação de viver no Brasil hoje é a de afundar até a cintura num delírio coletivo pegajoso. Todos os dias o mundo parece acabar, só para amanhecer de novo mais confuso, incerto, violento e bizarro.

É impossível não falar de política. Nesta semana, então, o assunto domina, ao ponto de tornar a rotina de quem vive de escrever sobre arte quase um exercício alienado diante do caos que irrompe lá fora. Não deveria ser, já que a arte, em especial quando gera repercussão, se ocupa de política.

Leirner parece ter razão. No jogo de xadrez de todas peças iguais que ele diz ver na arte do país, ninguém toma uma posição. Arte, já disse Oscar Wilde, é inútil, reafirmando com isso sua utilidade candente —ela é um dos motores, talvez até mais eficazes do que a política, na hora de moldar realidades. Isso porque estrutura quando não desestabiliza a percepção por motivos de força maior.

Obra de Joseph Beuys, agora na galeria Bergamin & Gomide
Obra de Joseph Beuys, agora na galeria Bergamin & Gomide

Enquanto a política corria solta ontem à noite, com manifestações estourando no Planalto e na avenida Paulista, estava num jantar na casa de um galerista. Em torno da mesa, colecionadores, marchands e artistas. O motivo do encontro era celebrar a mostra de Joseph Beuys que a galeria Bergamin & Gomide abre hoje. Um dos nomes mais politizados da história da arte, Beuys foi um dos fundadores do Partido Verde na Alemanha e seu conceito de escultura social é um apelo à revolução.

“La rivoluzione siamo noi”, disse Paola Colacurcio, colecionadora que cedeu boa parte das obras de Beuys para a mostra, na hora do brinde. Ela lembrava uma frase célebre do alemão, que na situação atual não sei se reforça a crença ou a descrença generalizada em tudo. Foi então que um colecionador ali disse algo muito parecido com a observação de Leirner e o jogo de xadrez. Ele reclamava que os artistas hoje vivem numa posição confortabilíssima. Embaralham esquerda e direita, vivem em cima do muro num éter difuso, prontos para tudo atacar ou tudo celebrar e vice-versa. Tempos atrás, a crítica Aracy Amaral deu uma entrevista em que desancava os jovens artistas do país pelo mesmo motivo, a falta de engajamento que torna anódinas suas obras.

Estamos, aliás, a poucas semanas da abertura de mais uma edição da SP-Arte, a festa do mercado da arte, quando artistas são convocados a esvaziar o ateliê e levar para o mercadão tudo que for possível vender. Feiras, mesmo um tanto insalubres, todos sabemos, são essenciais. Movimentam, geram debate e, em especial, grana para manter a coisa rolando. Sem isso, não existe galeria, não existe obra, não existe artista, pelo menos dentro desse nosso mundinho capitalista.

Não espero ver política na feira. Mas volta e meia sou acusado de pessimismo quando falo dos rumos do mercado, da situação econômica incerta. Não é questão de otimismo nem pessimismo. É a realidade, e às vezes ela é triste. Espero que tudo melhore, para o bem de todos. Aliás, enquanto não acontece um surto de consciência política entre os artistas do país, dissecar esse caos é necessário. Eu mesmo confesso que estou perdido. Um pouco de luz pode estar numa mudança de atitude. Quem sabe o tabuleiro de xadrez de Nelson Leirner não volta a ter duas cores? Ou o éter que tudo envolve não evapora? Nessas horas, relembrar Leirner e Beuys pode ser um ato político.