Inhotim renasce com Brumadinho, da lama aos outdoors e playgrounds
Uma pequena cruz branca descansa à sombra das letras de cimento pintadas da mesma cor. Brumadinho, a simplória palavra-escultura no trevo de entrada da cidadezinha mineira, parece desafiar com sua brancura o vermelho do barro que engoliu tudo e deixou um rastro de mortos ali há quase três anos.
Desafia também o mais novo e estranho elemento da paisagem. De frente para o letreiro, um outdoor imenso mostra o interior de uma caixa de papelão vazia e esvaziada de cor, só o monótono pardo do papel e algo de verde que entra por buracos e fendas de sua estrutura, como janelas para a natureza do lugar —na verdade a grama do terraço da casa da artista em São Paulo.
Lucia Koch, a autora de uma série de placas gigantes agora espalhadas pelo povoado, reage com sua antipropaganda ao torto renascimento de uma cidade arrasada, ou a todas as suas vidas reviradas de lama e miséria, nas palavras dela.
Brumadinho, todos sabem, já não era lembrada havia tempos como um polo de extração de minério quando a barragem da mina Córrego do Feijão cedeu e mergulhou tudo num mar tóxico de barro. Estava firme no mapa como um dos destinos mais queridos do povo artsy, lar do Instituto Inhotim, o megamuseu de arte contemporânea nascido dos delírios do empresário Bernardo Paz, dono, não espanta, de uma mineradora.
Tudo, aliás, se retroalimenta na dinâmica Inhotim-Brumadinho. A Vale, empresa responsável pela estrutura que rompeu, é a grande patrocinadora do museu que se tornou o maior empregador da cidade e uma espécie de atalho rumo ao futuro em tempos de pandemia e catástrofe econômica. Mas não seria exagerado pensar que muitos dos jardineiros ou garotos e garotas que ziguezagueiam todo dia conduzindo visitantes em carrinhos de golfe aos pavilhões faraônicos do parque tenham perdido um parente ou amigo naquela tragédia.
Inhotim também já viveu dias melhores. Um ano depois do colapso da barragem, veio a pandemia, que forçou a paralisação das visitas e exposições por meses a perder de vista. Houve ainda a ameaça de liquidação das obras por causa de uma dívida bilionária de Paz com o governo, só agora em vias de pagamento.
O dinheiro enfim irriga também a cidadezinha à sombra do grande museu, com a chegada de indenizações pagas pela Vale. No rastro da tragédia, surgiram primeiro pichações nos muros dizendo que a “Vale não vale nada” e depois outdoors anunciando novos mercados, empreiteiras, condomínios, cursos de informática, piscinas pré-fabricadas, firmas de advocacia, lojas de móveis e também funerárias.
Os outdoors de Lucia Koch, nesse sentido, rebatem a pujança alcançada oferecendo o vazio arquitetônico, da caixa de papelão a queijeiras fotografadas por dentro que mais lembram pavilhões modernistas ou um simples saco de carvão que ganha ares de caverna enlameada pairando sobre a cidade cansada dessa cor.
Esses mesmos anúncios que em Brumadinho dividem o espaço com a propaganda real, diário de um novo fluxo financeiro, ressurgem nas galerias imaculadas do Inhotim e coroando ilhotas nos lagos tingidos de turquesa radioativo.
Koch vem fotografando e ampliando o interior de embalagens há mais de três décadas, numa reflexão sobre o que fica na ausência de um objeto, uma memória tangível. Nesse ponto, sua nova série não parece tão nova, mas ganha em ambição ao romper uma espécie de barreira erguida entre o pacato povoado lá fora e a Disneylândia reluzente dos entendedores de arte.
Não por acaso, Douglas de Freitas, diretor artístico à frente de uma nova leva de inaugurações que marcam a retomada da instituição num ensaio de pós-pandemia, vem fazendo questão de dizer que tudo se ancora no território.
Seria o território de terra vermelha e certa dor latente que pisamos aqui, mas também outros territórios asfixiados pelo trânsito frenético ao redor, caso do Mediterrâneo que surge nos desenhos da polonesa Aleksandra Mir, ou resquícios de arquiteturas, de escolas a templos religiosos, transformados em playground por Rommulo Vieira Conceição num dos jardins.
Os tons berrantes das estruturas metálicas que o artista construiu no gramado dissolvem o impacto bruto das referências a templos cristãos e muçulmanos ali. Esses fantasmas do ambiente construído nas cidades, traços de abismos ideológicos muitas vezes intransponíveis, convivem com andaimes e grades afiadas. Seriam uma possível alusão a nossas cidades cada vez mais hostis, de condomínios que se vendem com varanda gourmet a pedras debaixo dos viadutos para espantar o repouso de moradores de rua.
Noutro território não mais solar que domina todas as paredes de uma galeria, Aleksandra Mir partiu de sua experiência vivendo no arquipélago italiano da Sicília para povoar suas praias com vítimas de sonhos ambíguos beirando pesadelos, de veranistas desiludidos a ondas de migrantes, todos assolados pela crise do clima, o esfacelamento político, o amor que chegou ao fim.
Seus desenhos em branco e preto, de traços que perdem a força à medida que a tinta da caneta vai se esgotando, são o reflexo engasgado de um mundo que rasteja. Nada mais parece valer a pena num paraíso que pode se revelar a porta do inferno sem retorno.
O atlas apocalíptico de Mir, da mesma forma que a propaganda esvaziada de Lucia Koch e o playground ao mesmo tempo alegre e sinistro de Rommulo Vieira Conceição, mapeia um estado de coração partido, dor de cabeça e derretimento nas ondas de calor.