Bienal de São Paulo mostra altíssima temperatura não no fogo, mas nas cinzas

Estamos mais perto das cinzas do que do fogo, e a barbárie espreita. No dia do incêndio que arrasou o prédio, dizem que a temperatura chegou a 450 graus no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Qualquer objeto vindo do espaço também derrete ao entrar na atmosfera terrestre, coisa de mil graus, o mesmo calor da lava que escorre de um vulcão.

Mas, no lugar do vermelho das chamas ou do fulgor da brasa, é o preto que domina quase toda a atual Bienal de São Paulo. O retrato que faz do Brasil e do mundo em colapso é duro, monocromático. A violência da terra arrasada já não se agita, esperneia. Sobraram os restos, fragmentos e escombros carbonizados.

O meteorito resgatado das ruínas do Museu Nacional está ali na entrada da mostra diante do paredão de desenhos em que Carmela Gross repete à exaustão a figura de um vulcão, manchas pretas que trazem na própria opacidade um desespero resignado, a tragédia consumada. É o fóssil que denuncia a nossa destruição.

Se os vulcões ali já dormem, agora só pedras, os vultos adiante assustam. Regina Silveira mostra na sequência a série em que um soldado, um time de futebol, políticos e um tanque de guerra, como os blindados que vimos há pouco desfilar pela Esplanada dos Ministérios, têm seus contornos esgarçados até virar sombras que se alastram por tudo, consomem a paisagem.

O clima é de luto pelo que se perdeu e de ameaça latente, como o labirinto de vidro com marcas de bala da mesma artista também deixa ver. A performance de Paulo Nazareth em que um rapaz afia pedaços de ferro para improvisar facas, da forma como fazem detentos que planejam uma fuga ou rebelião, é o retrato áspero de uma revolução que se agita nas entranhas mas que leva tempo. É artesanal, feita na unha a sua revolta.

São muitos, aliás, os relatos de encarcerados, presos políticos, vítimas de tortura e racismo pelas mãos do Estado.

O chileno Alfredo Jaar estampa em cartazes a surrada frase dos “Cadernos do Cárcere” de Antonio Gramsci, aquela que diz que o “velho mundo está morrendo, o novo demora a nascer e, nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Seus cinco retratos de uma menina vietnamita repetidos em todas as combinações possíveis nas quatro paredes de uma galeria também lembram a frieza do registro policial, um rosto de detento por trás da doce refugiada.

Outros cartazes de Nazareth também falam da brutalidade ao redor. E Antonio Dias mapeia prisões cósmicas em suas pinturas pretas, grades de linhas brancas em ângulos retos sobre fundo negro que constroem, entre outras coisas, um ambiente para um prisioneiro ou delimitam tempo, o dia feito prisioneiro.

Não há na mostra manifestação maior de força, aliás, do que essa série abismal de Dias, reação esvaziada, ao mesmo tempo bruta e serena, à fase mais violenta da nossa ditadura —os trabalhos vieram no rastro do AI-5. Não fosse esse dado histórico, talvez se confundissem com singelos estudos de constelações, ou arte conceitual de extração geométrica, mas vemos ali um exercício de expurgo, uma vontade de fuga arquitetada com destreza, como o preso que fabrica e afia suas facas.

Uma das telas ali traz a inscrição “o corpo” e pode ser vista como alusão às delicadas estruturas metálicas no meio da sala, obras da norueguesa Hanni Kamaly. São esculturas feitas para lembrar aqueles executados pelo Estado, mas mal remetem a figuras humanas, são articulações metálicas, puro esqueleto que se equilibra frágil, uma massa etérea de ângulos agudos.

Esses restos de homem estão cercados pelas pinturas, talvez como imaginou Hélio Oiticica em sua “Ronda da Morte”, projeto que nunca saiu do papel, sairia agora, mas foi cancelado por causa da pandemia. O artista pensou numa tenda, espécie de circo preto, em que convidados dançariam ao som de rock ou música disco. As luzes seriam brilhantes, como numa boate. Enquanto a noite avançava, homens a cavalo cercariam a tenda, num sequestro. Na mostra, estão os arquivos que descrevem o projeto, e a secura das anotações sem a obra materializada parece bastar.

Muitas das obras ali são só ensaios mesmo, e o tempo, as várias camadas de passado e presente que se encontram a todo instante na mostra, indicam como tudo vai acabar no futuro —em geral, bem mal.

Os dois momentos de euforia registrados em Brasília por Mauro Restiffe, primeiro a posse de Lula e depois a de Bolsonaro, estão ali lado a lado, a multidão que avança sobre os espelhos d’água, a capital federal menos monumental do que nunca, tomada pelo povo, o mesmo povo que acreditou num projeto de esquerda e depois no da direita para acabar no lamaçal fumegante em que nos metemos.

No vão entre as rampas do pavilhão de Niemeyer, o monumento bem moderno, está o antimonumento dos americanos Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter, um tablado da Bolsa de Chicago onde se negociavam commodities. É uma arena, um palco às avessas que parasita a alvura das curvas de concreto do arquiteto de Brasília.

Esse é outro claro-escuro da mostra. Nas entrelinhas, os artistas, escalados por Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, denunciam o lado sinistro do nosso modernismo sem escala humana, palácios de poder mais barrocos que modernos, espaços de branquitude que não veem o negro.

Isso fica claro na corda esticada por Arjan Martins formando um triângulo, alusão às rotas do tráfico negreiro, entre as rampas do pavilhão. O trabalho fica em frente a um mural de retratos do abolicionista americano Frederick Douglass, que fez da própria imagem de negro livre, alinhado e bem vestido, um manifesto pelo fim da escravidão.

O abismo entre brancos e negros parece sublinhar o alto contraste entre preto e branco de quase todas as obras. Se existem as sombras de Regina Silveira e os vulcões de Carmela Gross, há ainda o corpo negro de Zózimo Bulbul que se agita contra um fundo branco em seu filme “Alma no Olho”. É o negro dissecado ali como carne —dentes, cabelos, ombros, mamilos, pés, axilas.

Mulheres negras também se transformam em estranhas bonecas articuladas nas colagens da norueguesa Frida Orupabo. Elas viram instrumento maleável nesses retratos que mais desancam que favorecem o retratado, são antibustos arquitetados pela dor.

É nessa secura, no preto e no branco, no fogo e nas cinzas, que a atual Bienal mostra sua altíssima temperatura em relação aos tempos da peste, uma reação sóbria, talvez resignada diante da tragédia.

Uma quase não obra ilustra bem isso —na contramão do resgate do meteorito do Museu Nacional e outros gestos inúteis de reparação, a colombiana Gala Porras-Kim sugere, numa carta à instituição, que sejam incinerados os restos da múmia Luzia em vez da vã tentativa de reconstruir agora seu corpo para exposição.

É o plano de ação e luto para nossos tempos intragáveis.