SP-Arte volta com descoberta do ‘pink money’ e saudades loucas da euforia
É um globo espelhado, desses de boate. Na pintura de Marcelo Cidade, ele flutua sozinho, no branco imenso do papel, as cores esmaecidas, um cinza morto. A festa ali está mais para um cadáver estendido na luz fria do necrotério, asséptica e talvez ainda impossível.
Na volta da SP-Arte ao mundo de carne e osso depois de duas edições virtuais, os looks de vernissage enfim saíram do armário e galerias, como a Vermelho, de Cidade, puseram na linha de frente obras que refletem um clima de euforia, ou que ao menos tentam fazer isso sem a quebra do decoro imposto por esses quase dois anos de pandemia.
Do outro lado da Arca, o imenso galpão na Vila Leopoldina que virou a nova casa da feira na zona leste paulistana, Francisco Hurtz encheu de homens pelados um estande-vestiário montado pela galeria Verve, com azulejos no chão e nas paredes e os desenhos de traço limpo e alta carga homoerótica do artista, agora em franca ascensão.
Faz sentido. Talvez poucas coisas neste início de pós-pandemia façam tanta falta quanto uma festa e a intimidade de outro corpo ao alcance do toque das mãos. Sentimos saudades da boate e da pegação, parecem dizer esses dois artistas muito distintos mas em total sintonia com o momento.
Quem conhece a obra de Cidade vai lembrar que seu trabalho sempre foi uma reflexão forte sobre o embate do homem com a metrópole, a brutalidade do brutalismo, o ar sinistro da modernidade erguida em concreto aparente.
Ele é o cara que, pelado num museu, se deixou alvejar por arremessos de cimento molhado, que cravejou de balas os cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi, que virou do avesso a rua Augusta numa performance-passeio contra o fluxo. E ele é o cara que agora lamenta o fim de uma era, disseca o que sobrou da festa —a gente era feliz e nem sabia.
Hurtz saiu do underground queer e agora experimenta o sucesso comercial explorando o que nunca coube num nicho —a beleza torta do corpo masculino e junto dela a masculinidade frágil. Seus belos desenhos falam do que é ser homem e desse lugar do homem, gay ou hétero, numa sociedade acostumada com expressões como pôr o pau na mesa. Nas suas obras, vemos esse cara, mas também os rapazes desajustados, a solidão na ressaca da festa, a “broderagem” sem culpa, a expiação do tóxico no macho tóxico.
Outros homens em outras telas também causam um curto-circuito à luz do MeToo, do lavrador com uma lágrima que escorre do rosto numa pintura de Glauco Rodrigues, na Frente, ao lindo retrato de Desali batizado “Corpo Amigo”, na galeria Rodrigo Ratton, de Belo Horizonte, aos rapazes negros erotizados nas telas de Renan Teles, na Bailune Biancheri, e ao kitsch garoto de cueca com uma borboleta e flores de Fernando Cardoso, na Ybakatu, de Curitiba.
Os artistas nunca tiveram qualquer receio de trabalhar esse erotismo do corpo do homem, mas agora as galerias aqui encampam como nunca essa bandeira —não seria exagero dizer que há mais homens nus nesta feira do que mulheres, as Guerrilla Girls notariam a flagrante descoberta do “pink money” pelos marchands do establishment.
Outras bandeiras, é claro, estão em jogo. Artistas negros, indígenas e trans, muitos deles na atual Bienal de São Paulo, ganham os holofotes. É o caso de Jaider Esbell, na Millan, Uýra Sodoma, na galeria C., do Rio de Janeiro, Gustavo Nazareno, na também carioca Portas Vilaseca, e todo o estande da paulistana HOA.
Vozes mais experientes também brilham. Na Central, estão duas pinturas de Gretta Sarfaty que deveriam estar num museu. Numa delas, seu próprio rosto se repete em fotogramas, da beleza ao horror. Se há muitos homens nesta SP-Arte, há também ao menos a artista que construiu essa visão caleidoscópica e vertiginosa da mulher em carne viva, potente e exuberante.
Enquanto Sarfaty desconstrói o erotismo e joga com os estereótipos machistas da mulher histérica no seu esquema de frames que lembram a nouvelle vague, ecos do passado chamam a atenção. Na Pinakotheke, uma parede inteira mostra as telas de mulheres negras que Pedro Correia de Araujo fez na década de 1930.
Elas são beldades, troféus, seios empinadíssimos, mas embaladas num geometrismo art déco. À frente delas, uma escultura com o rosto altivo de uma delas. É lindo, mas bom saber que há outras revoluções em curso nessa volta —eufórica?— das feiras de arte ao chamado presencial.