Obra de Giorgio Morandi é sopro de paz e ordem contra a violência da pandemia

O mais radical na obra de Giorgio Morandi é que nada muda. Seus potes, jarros e vasos de flor se repetem nas telas ao longo de décadas. Chega a ser desconcertante a sua crença na verdade da pintura, um mundo inabalável arquitetado na solidão, regido por uma ordem cósmica que é só dele.

E espanta ainda mais que um artista que tenha atravessado as duas guerras mundiais sem quase nunca deixar a Itália jamais tenha abandonado sua obsessão plástica com a mais pura representação dos objetos ao seu redor, os fragmentos da rotina e dos dias.

Morandi se refugiou na construção desse mundo paralelo, de extremo rigor e esplendor quase tátil, enquanto o mundo real lá fora rugia.

Talvez por isso o reencontro com suas obras agora seja uma experiência quase religiosa, no sentido estrito mesmo de nos religar a alguma coisa perdida. Acalma os nervos de quem vive ainda a fúria da pandemia, nossas montanhas de cadáveres, e o desgoverno violento de Bolsonaro.

Na entrada da mostra do artista agora no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, fotografias de Luigi Ghirri retratam o ateliê de Morandi em Bolonha. Os tons das paredes ecoam o ocre, o amarelo esmaecido e o cinza-gelo de suas telas. E ali estão os jarros, vasos e potes, quase como provas de sua materialidade sólida, que Morandi tanto exacerbou nos quadros.

Ninguém duvida da existência dessas coisas, objetos banais que se acumulam em casa, mas Morandi não só pintou essas coisas como são —sua vontade era encaixar esses volumes no ar e na luz que os rodeiam, tão espessos e arenosos, duros, como os objetos.

Tudo em Morandi é volume, daí o prazer tátil que suas obras despertam. Fundo e figura se juntam, o ar é denso e a luz toca a cena como um manto de veludo. Há textura em tudo —a solidez é plena.

Nessas composições, tudo parece feito da mesma matéria e tudo está em seu lugar, como monumentos imóveis, pilares estruturais de uma construção. Morandi, em quadro atrás de quadro, perseguia de fato uma vontade estruturante, uma arquitetura robusta para o mais frágil instante. Faz sentido que a disposição das peças em muitas das telas lembre os objetos arranjados num retábulo, com o rigor e a ordem inviolável de um altar.

Não vejo como uma questão espiritual, mas um olhar sacralizante lançado ao mais profano. Nossas mesas de trabalho ou a pia da cozinha são os espelhos da nossa passagem sofrida por um mundo que teima em desmoronar todos os dias. E a vida, Morandi parece dizer com seus quadros, é o esforço inútil de juntar esses caquinhos todos os dias para ver o jarro e o vaso se estilhaçarem de novo e de novo.

Essa intimidade com os objetos, a fusão que vivemos com a casa na fritura dos sucessivos lockdowns tornam ainda mais potentes essas pinturas. Na pandemia, a casa passou a ser extensão anatômica dos nossos corpos, um cenário que se repete sem solavancos da mesma forma que os dias se arrastam iguais, como uma febre que não passa e nos deixa mais sensíveis ao toque.

Isso é explícito num dos momentos mais felizes da Bienal de São Paulo agora em cartaz. Ali, outra seleção de telas de Morandi está de frente para os relevos de argila da artista romena Anna-Bella Papp, eles também representações angulosas de detalhes de interiores, escadarias, móveis, a casa dissecada, transformada em fetiche tátil na mesa branca.

Uma das últimas mostras a entrar em cartaz na cidade antes da pandemia, na galeria Marcelo Guarnieri, parece reviver agora nesse reencontro com Morandi. Lá estavam as pinturas da alemã Eleonore Koch agora de volta à Bienal de São Paulo. Suas telas de interiores enigmáticos, que operam uma espécie de suspensão do tempo dentro de uma arquitetura rígida de pinceladas, ecoam aquela tensa placidez das obras de Morandi.

Nesse ponto, impossível não ver na metafísica de Giorgio De Chirico um elo entre os dois. Morandi conhecia a obra do pintor das praças vazias, as sombras e ventos incongruentes, a luz dura que desafiava a posição dos astros no céu. Koch também parece buscar nele essa paz enganosa, o vazio contemplativo que pode ser prelúdio a uma catástrofe.

Morandi, premiado como o maior pintor de uma das primeiras edições da mostra do parque Ibirapuera, há tempos encontra ecos no Brasil. Seu gênio é evidente na obra de muitos artistas que aqui foram na contramão do geometrismo conceitual das nossas vanguardas para entrar de cabeça na pintura figurativa, da mesma forma que ele, na Itália do futurismo, se manteve fiel a outra visão de mundo.

É fato que o traço de Cézanne, que imprimiu à natureza uma geometria ao mesmo tempo rigorosa e lírica, ronda Morandi, mas seria mais rico ver ao lado de suas telas na retrospectiva agora em cartaz artistas que partilhassem da mesma ordem do sensível.

Soa um tanto forçado o diálogo ali com o americano Wayne Thiebaud, com uma taça de sorvete ao lado de um vaso de flores de Morandi, e é rasa a comparação com as fotografias de Lawrence Carroll de uma estrada em dia de chuva. A britânica Rachel Whiteread oferece alguns contrapontos à obra do italiano, uma depuração formalista de suas composições já bastante comedidas. Mas os intrusos ali, digamos, são mais distração do que um complemento visual.

Morandi precisa ser visto sem ruídos. Sua obra, aliás, é a máxima representação do silêncio, de uma paz que só existe nessas composições. Talvez seja esse o dado de tensão em sua obra, a nossa consciência de que esse mundo em ordem, de cada coisa em seu lugar, numa luz que tudo lambe com delicadeza, não passa de uma coisa inventada.

Suas telas nos fazem querer habitar outro espaço, um universo estável, de pés firmes no chão, em que luz e sombra têm densidade palpável, a violência é neutralizada e temos as flores ao alcance das mãos.