Plástico https://plastico.blogfolha.uol.com.br artes visuais além do cubo branco Wed, 03 Nov 2021 01:00:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Obra de Giorgio Morandi é sopro de paz e ordem contra a violência da pandemia https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/obra-de-giorgio-morandi-e-sopro-de-paz-e-ordem-contra-a-violencia-da-pandemia/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/11/02/obra-de-giorgio-morandi-e-sopro-de-paz-e-ordem-contra-a-violencia-da-pandemia/#respond Tue, 02 Nov 2021 18:30:41 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/morandi_blog-320x213.jpg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2885 O mais radical na obra de Giorgio Morandi é que nada muda. Seus potes, jarros e vasos de flor se repetem nas telas ao longo de décadas. Chega a ser desconcertante a sua crença na verdade da pintura, um mundo inabalável arquitetado na solidão, regido por uma ordem cósmica que é só dele.

E espanta ainda mais que um artista que tenha atravessado as duas guerras mundiais sem quase nunca deixar a Itália jamais tenha abandonado sua obsessão plástica com a mais pura representação dos objetos ao seu redor, os fragmentos da rotina e dos dias.

Morandi se refugiou na construção desse mundo paralelo, de extremo rigor e esplendor quase tátil, enquanto o mundo real lá fora rugia.

Talvez por isso o reencontro com suas obras agora seja uma experiência quase religiosa, no sentido estrito mesmo de nos religar a alguma coisa perdida. Acalma os nervos de quem vive ainda a fúria da pandemia, nossas montanhas de cadáveres, e o desgoverno violento de Bolsonaro.

Na entrada da mostra do artista agora no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, fotografias de Luigi Ghirri retratam o ateliê de Morandi em Bolonha. Os tons das paredes ecoam o ocre, o amarelo esmaecido e o cinza-gelo de suas telas. E ali estão os jarros, vasos e potes, quase como provas de sua materialidade sólida, que Morandi tanto exacerbou nos quadros.

Ninguém duvida da existência dessas coisas, objetos banais que se acumulam em casa, mas Morandi não só pintou essas coisas como são —sua vontade era encaixar esses volumes no ar e na luz que os rodeiam, tão espessos e arenosos, duros, como os objetos.

Tudo em Morandi é volume, daí o prazer tátil que suas obras despertam. Fundo e figura se juntam, o ar é denso e a luz toca a cena como um manto de veludo. Há textura em tudo —a solidez é plena.

Nessas composições, tudo parece feito da mesma matéria e tudo está em seu lugar, como monumentos imóveis, pilares estruturais de uma construção. Morandi, em quadro atrás de quadro, perseguia de fato uma vontade estruturante, uma arquitetura robusta para o mais frágil instante. Faz sentido que a disposição das peças em muitas das telas lembre os objetos arranjados num retábulo, com o rigor e a ordem inviolável de um altar.

Não vejo como uma questão espiritual, mas um olhar sacralizante lançado ao mais profano. Nossas mesas de trabalho ou a pia da cozinha são os espelhos da nossa passagem sofrida por um mundo que teima em desmoronar todos os dias. E a vida, Morandi parece dizer com seus quadros, é o esforço inútil de juntar esses caquinhos todos os dias para ver o jarro e o vaso se estilhaçarem de novo e de novo.

Essa intimidade com os objetos, a fusão que vivemos com a casa na fritura dos sucessivos lockdowns tornam ainda mais potentes essas pinturas. Na pandemia, a casa passou a ser extensão anatômica dos nossos corpos, um cenário que se repete sem solavancos da mesma forma que os dias se arrastam iguais, como uma febre que não passa e nos deixa mais sensíveis ao toque.

Isso é explícito num dos momentos mais felizes da Bienal de São Paulo agora em cartaz. Ali, outra seleção de telas de Morandi está de frente para os relevos de argila da artista romena Anna-Bella Papp, eles também representações angulosas de detalhes de interiores, escadarias, móveis, a casa dissecada, transformada em fetiche tátil na mesa branca.

Uma das últimas mostras a entrar em cartaz na cidade antes da pandemia, na galeria Marcelo Guarnieri, parece reviver agora nesse reencontro com Morandi. Lá estavam as pinturas da alemã Eleonore Koch agora de volta à Bienal de São Paulo. Suas telas de interiores enigmáticos, que operam uma espécie de suspensão do tempo dentro de uma arquitetura rígida de pinceladas, ecoam aquela tensa placidez das obras de Morandi.

Nesse ponto, impossível não ver na metafísica de Giorgio De Chirico um elo entre os dois. Morandi conhecia a obra do pintor das praças vazias, as sombras e ventos incongruentes, a luz dura que desafiava a posição dos astros no céu. Koch também parece buscar nele essa paz enganosa, o vazio contemplativo que pode ser prelúdio a uma catástrofe.

Morandi, premiado como o maior pintor de uma das primeiras edições da mostra do parque Ibirapuera, há tempos encontra ecos no Brasil. Seu gênio é evidente na obra de muitos artistas que aqui foram na contramão do geometrismo conceitual das nossas vanguardas para entrar de cabeça na pintura figurativa, da mesma forma que ele, na Itália do futurismo, se manteve fiel a outra visão de mundo.

É fato que o traço de Cézanne, que imprimiu à natureza uma geometria ao mesmo tempo rigorosa e lírica, ronda Morandi, mas seria mais rico ver ao lado de suas telas na retrospectiva agora em cartaz artistas que partilhassem da mesma ordem do sensível.

Soa um tanto forçado o diálogo ali com o americano Wayne Thiebaud, com uma taça de sorvete ao lado de um vaso de flores de Morandi, e é rasa a comparação com as fotografias de Lawrence Carroll de uma estrada em dia de chuva. A britânica Rachel Whiteread oferece alguns contrapontos à obra do italiano, uma depuração formalista de suas composições já bastante comedidas. Mas os intrusos ali, digamos, são mais distração do que um complemento visual.

Morandi precisa ser visto sem ruídos. Sua obra, aliás, é a máxima representação do silêncio, de uma paz que só existe nessas composições. Talvez seja esse o dado de tensão em sua obra, a nossa consciência de que esse mundo em ordem, de cada coisa em seu lugar, numa luz que tudo lambe com delicadeza, não passa de uma coisa inventada.

Suas telas nos fazem querer habitar outro espaço, um universo estável, de pés firmes no chão, em que luz e sombra têm densidade palpável, a violência é neutralizada e temos as flores ao alcance das mãos.

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SP-Arte volta com descoberta do ‘pink money’ e saudades loucas da euforia https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/23/sp-arte-volta-com-descoberta-do-pink-money-e-saudades-loucas-da-euforia/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/10/23/sp-arte-volta-com-descoberta-do-pink-money-e-saudades-loucas-da-euforia/#respond Sat, 23 Oct 2021 19:20:45 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/10/sp-arte-320x213.jpeg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2879

É um globo espelhado, desses de boate. Na pintura de Marcelo Cidade, ele flutua sozinho, no branco imenso do papel, as cores esmaecidas, um cinza morto. A festa ali está mais para um cadáver estendido na luz fria do necrotério, asséptica e talvez ainda impossível.

Na volta da SP-Arte ao mundo de carne e osso depois de duas edições virtuais, os looks de vernissage enfim saíram do armário e galerias, como a Vermelho, de Cidade, puseram na linha de frente obras que refletem um clima de euforia, ou que ao menos tentam fazer isso sem a quebra do decoro imposto por esses quase dois anos de pandemia.

Do outro lado da Arca, o imenso galpão na Vila Leopoldina que virou a nova casa da feira na zona leste paulistana, Francisco Hurtz encheu de homens pelados um estande-vestiário montado pela galeria Verve, com azulejos no chão e nas paredes e os desenhos de traço limpo e alta carga homoerótica do artista, agora em franca ascensão.

Faz sentido. Talvez poucas coisas neste início de pós-pandemia façam tanta falta quanto uma festa e a intimidade de outro corpo ao alcance do toque das mãos. Sentimos saudades da boate e da pegação, parecem dizer esses dois artistas muito distintos mas em total sintonia com o momento.

Quem conhece a obra de Cidade vai lembrar que seu trabalho sempre foi uma reflexão forte sobre o embate do homem com a metrópole, a brutalidade do brutalismo, o ar sinistro da modernidade erguida em concreto aparente.

Ele é o cara que, pelado num museu, se deixou alvejar por arremessos de cimento molhado, que cravejou de balas os cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi, que virou do avesso a rua Augusta numa performance-passeio contra o fluxo. E ele é o cara que agora lamenta o fim de uma era, disseca o que sobrou da festa —a gente era feliz e nem sabia.

Hurtz saiu do underground queer e agora experimenta o sucesso comercial explorando o que nunca coube num nicho —a beleza torta do corpo masculino e junto dela a masculinidade frágil. Seus belos desenhos falam do que é ser homem e desse lugar do homem, gay ou hétero, numa sociedade acostumada com expressões como pôr o pau na mesa. Nas suas obras, vemos esse cara, mas também os rapazes desajustados, a solidão na ressaca da festa, a “broderagem” sem culpa, a expiação do tóxico no macho tóxico.

Outros homens em outras telas também causam um curto-circuito à luz do MeToo, do lavrador com uma lágrima que escorre do rosto numa pintura de Glauco Rodrigues, na Frente, ao lindo retrato de Desali batizado “Corpo Amigo”, na galeria Rodrigo Ratton, de Belo Horizonte, aos rapazes negros erotizados nas telas de Renan Teles, na Bailune Biancheri, e ao kitsch garoto de cueca com uma borboleta e flores de Fernando Cardoso, na Ybakatu, de Curitiba.

Os artistas nunca tiveram qualquer receio de trabalhar esse erotismo do corpo do homem, mas agora as galerias aqui encampam como nunca essa bandeira —não seria exagero dizer que há mais homens nus nesta feira do que mulheres, as Guerrilla Girls notariam a flagrante descoberta do “pink money” pelos marchands do establishment.

Outras bandeiras, é claro, estão em jogo. Artistas negros, indígenas e trans, muitos deles na atual Bienal de São Paulo, ganham os holofotes. É o caso de Jaider Esbell, na Millan, Uýra Sodoma, na galeria C., do Rio de Janeiro, Gustavo Nazareno, na também carioca Portas Vilaseca, e todo o estande da paulistana HOA. 

Vozes mais experientes também brilham. Na Central, estão duas pinturas de Gretta Sarfaty que deveriam estar num museu. Numa delas, seu próprio rosto se repete em fotogramas, da beleza ao horror. Se há muitos homens nesta SP-Arte, há também ao menos a artista que construiu essa visão caleidoscópica e vertiginosa da mulher em carne viva, potente e exuberante.

Enquanto Sarfaty desconstrói o erotismo e joga com os estereótipos machistas da mulher histérica no seu esquema de frames que lembram a nouvelle vague, ecos do passado chamam a atenção. Na Pinakotheke, uma parede inteira mostra as telas de mulheres negras que Pedro Correia de Araujo fez na década de 1930.

Elas são beldades, troféus, seios empinadíssimos, mas embaladas num geometrismo art déco. À frente delas, uma escultura com o rosto altivo de uma delas. É lindo, mas bom saber que há outras revoluções em curso nessa volta —eufórica?— das feiras de arte ao chamado presencial.   

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Do baile de favela à capa da Vogue, Jota e Elian Almeida reinventam a negritude https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/24/do-baile-de-favela-a-capa-da-vogue-jota-e-elian-almeida-reinventam-a-negritude/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/24/do-baile-de-favela-a-capa-da-vogue-jota-e-elian-almeida-reinventam-a-negritude/#respond Fri, 24 Sep 2021 20:15:03 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/jota4-320x213.jpg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2870 Não só a pintura não morreu, como está em curso uma avalanche de trabalhos figurativos, desbancando a agora velha abstração. A nova produção é tanta que as galerias parecem estar vendendo telas com tinta ainda fresca, num fluxo-relâmpago do ateliê para a casa dos colecionadores.

Nesse embalo, junto de uma necessária revisão de valores que sempre fecharam as portas do circuito para artistas fora do cânone —ou seja, todos que não são homens brancos heterossexuais—, novos nomes despontam e retratam aquilo que até agora era difícil encontrar com tal frescor e autenticidade nos cubos brancos.

Na temporada que começou com a ArtRio no início do mês, dois artistas chamam a atenção. Jota, talvez mais conhecido por seu perfil Explícito no Instagram, e Elian Almeida são dois jovens negros que tratam da negritude em seus trabalhos. As estratégias, no entanto, são bem distintas.

Explícito, no caso de Jota, é seu olhar para a vida do morro. Suas telas são flagras do melhor e do pior das favelas cariocas, dos bailes às balas perdidas, da cerveja no boteco ao cadáver enrolado no lençol.

Suas obras, quase 30 telas no total, lotam o MT Atelier, espaço num casarão do centro do Rio de Janeiro junto de botequins e antiquários. O traço é irregular —algumas telas são mais realistas, outras esbarram na caricatura, com pouco apreço por escala e regras clássicas de composição. A pincelada é rápida, como se traduzisse no imediatismo a urgência de mostrar a vida como ela é.

Ou seria a vida como nós, distantes do morro, imaginamos que ela seja? O olhar que torna exóticas as cenas prosaicas da favela é todo meu, mas parece corresponder também a uma demanda crescente de mercado, o desejo de ter essas visões, calcadas na exuberância pop do baile de favela, na prateleira para exposição e venda.

Já vimos isso antes, com o trabalho fortíssimo de Maxwell Alexandre, artista da Rocinha, ou mesmo nas performances de Paulo Nazareth, que levantou o ponto de sua própria imagem ser vendável e exótica quando posou com uma Kombi cheia de bananas na feira Art Basel Miami Beach.

Ocorre agora talvez um amadurecimento desse retrato da vida como ela é por quem de fato vive essa tal vida, não o forasteiro que a investiga. Jota, nascido em Honório Gurgel, o mesmo bairro da zona norte carioca onde nasceu Anitta, está longe de encarnar os estereótipos de “Girl from Rio”.

Suas pinturas têm uma acidez viva. Os poucos brancos nas telas surgem apavorados por rapazes negros ou em franca atitude racista, xingando de dentro de um carro. Policiais rondam muitas das cenas, da mais banal em que fardados de metralhadora em punho seguem com os olhos um garoto estiloso desfilar pela favela à trágica imagem de um velho levando uma criança baleada, o sangue ainda jorrando vermelho, num carrinho de mão. 

Jota é um construtor de alegorias eficazes, mas pairam dúvidas —suas telas se equilibram entre o lamento e a exaltação, e esse é o ponto que torna a leitura mais desafiadora.

Essa inquietação só desaparece nas obras que vejo como ponto alto da mostra, os retratos isolados, já desvencilhados da lógica de flagra do morro, em que jovens contra um fundo neutro são retratados em poses que lembram editoriais de moda, ecos do rap ostentação de um lado, como o rapaz descamisado que escancara um enorme sorriso de dentes de ouro, e um aceno a arquétipos de um realismo socialista, como o rapaz que verte uma lágrima —os “Retirantes”, de Portinari, vêm à mente— e traz estampado no peito um crachá que diz “exausto”.

O gesto de Elian Almeida, que ocupa todo o espaço da galeria Nara Roesler, em Ipanema, talvez também tenha partido da exaustão. Pintar de preto todas as capas da Vogue dispostas numa parede, no caso, canaliza a fúria de não ver o próprio rosto —ou qualquer rosto negro— nos espaços simbólicos de luxo e poder, como a tradicional revista de moda.

E a moda que se insinua nos retratos de Jota parece fazer a ponte com a subversão da ideia de glamour nas obras de Almeida. O projeto deste último, no entanto, se distancia da lógica da ostentação. Os seus são retratos de mulheres ativistas negras, tantas vezes esquecidas ou silenciadas, que ressurgem ainda sem rosto em capas imaginárias da Vogue.

Lá estão Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Ruth de Souza, entre outras. Elas posam dignas, sentadas à moda do retrato clássico, mas têm uma mancha opaca no lugar do rosto, um borrão negro como se a identidade não coubesse na moldura rígida da revista.

Almeida cuida dos detalhes, o acabamento dos tecidos, os azulejos atrás da retratada, as plantas do cenário, mas os rostos são ausentes como sempre estiveram nessas publicações e também no circuito da arte.

O contraste entre suas modelos sem rosto posando como figuras monárquicas nas telas em grande formato e as revistas reais apagadas à força mostra que o mundo imaginado por Almeida, em que essas figuras ali estariam retratadas com pompa, não é possível sem certo grau de violência.

Uma velha ordem precisa sair de cena, às vezes expulsa mesmo, para que outra se estabeleça, mas os rostos só se fixam com o tempo, não vêm com a nitidez de uma fotografia nem dependem dos truques de maquiagem e Photoshop.

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ArtRio reflete climão do 7 de Setembro e vende obras que espelham a nossa crise https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/artrio-reflete-climao-do-7-de-setembro-e-vende-obras-que-espelham-a-nossa-crise/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/09/artrio-reflete-climao-do-7-de-setembro-e-vende-obras-que-espelham-a-nossa-crise/#respond Thu, 09 Sep 2021 19:45:18 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/manata3-320x213.jpg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2859 O pós-Sete de Setembro, vulgo nossa infernal vida política até as próximas eleições, caso aconteçam, foi o pano de fundo da feira. Quando a ArtRio abriu as portas na Marina da Glória, o verde e o amarelo ainda tremulavam em bandeiras nas varandas e janelas dos apartamentaços da avenida Atlântica em Copacabana.

Difícil dizer que o Rio de Janeiro continua lindo, embora seja verdade. Mas feiras, o nome já diz, são oferta de mercadoria, e as galerias precisam vender. Afinal, o quadro de colapso total que se instalou na economia tem poder multiplicado de destruição na esfera da cultura, coisa muito negligenciada pelo inquilino do Alvorada, que o diga o esfacelamento da Lei Rouanet.

Na contramão de um mundo da arte que fechou as portas na pandemia, a ArtRio, segundo maior evento dessa natureza no país, depois da paulistana SP-Arte, realiza agora sua segunda edição pandêmica. Nem no auge da crise e sem vacinas, a feira carioca parou, embora tenha feito uma edição menor no ano passado.

O elenco de galerias agora cresceu, mas segue um tanto tímido, sem pesos-pesados nacionais, como as casas Bergamin & Gomide, Luisa Strina e A Gentil Carioca, e medalhões estrangeiros —todos os players aqui são brasileiros, a não ser a italiana Continua, que tem uma sede em São Paulo.

Há muito de mais do mesmo. Galerias que operam no chamado mercado secundário, em geral vendendo inventários de coleções desfeitas ou facilitando a troca de mãos de peças de arte moderna, comparecem com alguns tesouros, mas nada assim espantoso.

Na Almeida e Dale, há um belíssimo painel do suíço John Graz, modernista que se radicou em São Paulo, um dos motores da Semana de 22 que agora parece mais cobiçado do que nunca às vésperas do centenário daquela festa no Theatro Municipal paulistano.

Na mesma toada, têm forte presença na feira artistas como Ismael Nery e Vicente do Rego Monteiro, faróis do nosso modernismo fora do eixo Rio-São Paulo, alvos, aliás, de uma mostra que repensa as origens e o legado da Semana de 22 agora no Museu de Arte Moderna paulistano.

O marchand Paulo Kuczynski tem também algumas joias, uma pintura-instalação de Wesley Duke Lee em que um serrote atravessa duas imagens de uma mulher, além de uma escultura do britânico Henry Moore e uma bela abstração da portuguesa Maria Helena Vieira da Silva.

Ecos longínquos do nosso pesadelo atual também surgem aqui e ali. Mais de uma galeria na ArtRio tem à venda trabalhos de Antônio Henrique Amaral, que alegorizou nossa ditadura com pinturas de bananas, algumas verdes, outras maduras. Na época, os censores pensaram ser simples naturezas-mortas.

Obra de Xico Chaves à venda pela galeria Movimento, na ArtRio (Divulgação)

Na galeria Movimento, trabalhos de Xico Chaves, da década de 1990, também refletem um caos que nunca sai de cena. Suas garrafas plásticas pretas, cheias de areia recolhida em Brasília, trazem estampadas as palavras “força oculta”, um diagnóstico de que nada ia bem no Planalto talvez desde a sua construção.

Mas a novidade se dá na aparição de alguns novos nomes, em especial na esteira da recém-aberta Bienal de São Paulo, com presença recorde de artistas indígenas. A galeria Millan, por exemplo, tem uma tela de Jaider Esbell, nome central desta edição da mostra paulistana e figura por trás de uma coletiva que também acaba de abrir as portas no MAM.

Na galeria C., Uyra, uma performer também escalada pela atual Bienal que vem se destacando com ações em que parasita cenários de destruição ambiental, mostra uma série de trabalhos em preto e branco, bem diferentes dos ultracoloridos agora em São Paulo.

(Vale dizer que artistas históricos e consagrados da mostra do Ibirapuera dão as caras na ArtRio, de Antonio Dias, em várias galerias, a Carmela Gross, na Vermelho, passando pelo mais jovem Paulo Nazareth, na Mendes Wood DM.)

Já outro nome da novíssima geração é Bastardo, com duas pinturas à mostra na Casa Triângulo. O artista, que vem conquistando espaço com retratos de uma negritude néon afiliada ao rap ostentação, é dos mais interessantes nessa leva de autores que desponta no circuito —uma individual dele está marcada para novembro em São Paulo.

Outro jovem artista, Adriel Visoto domina o espaço da galeria paulistana Verve. São pinturas de escala mínima, muitas refletindo a solidão e o isolamento forçado da pandemia, assunto da ordem do dia. Talvez por isso, tenham despertado a atenção do Museu de Arte do Rio, que reservou várias das peças na abertura.

Mesmo na melancolia, parece haver um respiro. Longe das obras, no bar montado com vista para o mar e a pista do aeroporto Santos Dumont, o pôr do sol é um escândalo violeta. Artistas e colecionadores, quase sempre de máscara, a não ser para tomar um gole de espumante, confabulavam como antes. O mundo da arte parece, aos trancos e barrancos, estar voltando —à sombra do verde e do amarelo.

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Bienal de São Paulo mostra altíssima temperatura não no fogo, mas nas cinzas https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/bienal-de-sao-paulo-mostra-altissima-temperatura-nao-no-fogo-mas-nas-cinzas/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/04/bienal-de-sao-paulo-mostra-altissima-temperatura-nao-no-fogo-mas-nas-cinzas/#respond Sat, 04 Sep 2021 14:25:50 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/bienal_plastico-320x213.jpeg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2853 Estamos mais perto das cinzas do que do fogo, e a barbárie espreita. No dia do incêndio que arrasou o prédio, dizem que a temperatura chegou a 450 graus no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Qualquer objeto vindo do espaço também derrete ao entrar na atmosfera terrestre, coisa de mil graus, o mesmo calor da lava que escorre de um vulcão.

Mas, no lugar do vermelho das chamas ou do fulgor da brasa, é o preto que domina quase toda a atual Bienal de São Paulo. O retrato que faz do Brasil e do mundo em colapso é duro, monocromático. A violência da terra arrasada já não se agita, esperneia. Sobraram os restos, fragmentos e escombros carbonizados.

O meteorito resgatado das ruínas do Museu Nacional está ali na entrada da mostra diante do paredão de desenhos em que Carmela Gross repete à exaustão a figura de um vulcão, manchas pretas que trazem na própria opacidade um desespero resignado, a tragédia consumada. É o fóssil que denuncia a nossa destruição.

Se os vulcões ali já dormem, agora só pedras, os vultos adiante assustam. Regina Silveira mostra na sequência a série em que um soldado, um time de futebol, políticos e um tanque de guerra, como os blindados que vimos há pouco desfilar pela Esplanada dos Ministérios, têm seus contornos esgarçados até virar sombras que se alastram por tudo, consomem a paisagem.

O clima é de luto pelo que se perdeu e de ameaça latente, como o labirinto de vidro com marcas de bala da mesma artista também deixa ver. A performance de Paulo Nazareth em que um rapaz afia pedaços de ferro para improvisar facas, da forma como fazem detentos que planejam uma fuga ou rebelião, é o retrato áspero de uma revolução que se agita nas entranhas mas que leva tempo. É artesanal, feita na unha a sua revolta.

São muitos, aliás, os relatos de encarcerados, presos políticos, vítimas de tortura e racismo pelas mãos do Estado.

O chileno Alfredo Jaar estampa em cartazes a surrada frase dos “Cadernos do Cárcere” de Antonio Gramsci, aquela que diz que o “velho mundo está morrendo, o novo demora a nascer e, nesse claro-escuro, surgem os monstros”. Seus cinco retratos de uma menina vietnamita repetidos em todas as combinações possíveis nas quatro paredes de uma galeria também lembram a frieza do registro policial, um rosto de detento por trás da doce refugiada.

Outros cartazes de Nazareth também falam da brutalidade ao redor. E Antonio Dias mapeia prisões cósmicas em suas pinturas pretas, grades de linhas brancas em ângulos retos sobre fundo negro que constroem, entre outras coisas, um ambiente para um prisioneiro ou delimitam tempo, o dia feito prisioneiro.

Não há na mostra manifestação maior de força, aliás, do que essa série abismal de Dias, reação esvaziada, ao mesmo tempo bruta e serena, à fase mais violenta da nossa ditadura —os trabalhos vieram no rastro do AI-5. Não fosse esse dado histórico, talvez se confundissem com singelos estudos de constelações, ou arte conceitual de extração geométrica, mas vemos ali um exercício de expurgo, uma vontade de fuga arquitetada com destreza, como o preso que fabrica e afia suas facas.

Uma das telas ali traz a inscrição “o corpo” e pode ser vista como alusão às delicadas estruturas metálicas no meio da sala, obras da norueguesa Hanni Kamaly. São esculturas feitas para lembrar aqueles executados pelo Estado, mas mal remetem a figuras humanas, são articulações metálicas, puro esqueleto que se equilibra frágil, uma massa etérea de ângulos agudos.

Esses restos de homem estão cercados pelas pinturas, talvez como imaginou Hélio Oiticica em sua “Ronda da Morte”, projeto que nunca saiu do papel, sairia agora, mas foi cancelado por causa da pandemia. O artista pensou numa tenda, espécie de circo preto, em que convidados dançariam ao som de rock ou música disco. As luzes seriam brilhantes, como numa boate. Enquanto a noite avançava, homens a cavalo cercariam a tenda, num sequestro. Na mostra, estão os arquivos que descrevem o projeto, e a secura das anotações sem a obra materializada parece bastar.

Muitas das obras ali são só ensaios mesmo, e o tempo, as várias camadas de passado e presente que se encontram a todo instante na mostra, indicam como tudo vai acabar no futuro —em geral, bem mal.

Os dois momentos de euforia registrados em Brasília por Mauro Restiffe, primeiro a posse de Lula e depois a de Bolsonaro, estão ali lado a lado, a multidão que avança sobre os espelhos d’água, a capital federal menos monumental do que nunca, tomada pelo povo, o mesmo povo que acreditou num projeto de esquerda e depois no da direita para acabar no lamaçal fumegante em que nos metemos.

No vão entre as rampas do pavilhão de Niemeyer, o monumento bem moderno, está o antimonumento dos americanos Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter, um tablado da Bolsa de Chicago onde se negociavam commodities. É uma arena, um palco às avessas que parasita a alvura das curvas de concreto do arquiteto de Brasília.

Esse é outro claro-escuro da mostra. Nas entrelinhas, os artistas, escalados por Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, denunciam o lado sinistro do nosso modernismo sem escala humana, palácios de poder mais barrocos que modernos, espaços de branquitude que não veem o negro.

Isso fica claro na corda esticada por Arjan Martins formando um triângulo, alusão às rotas do tráfico negreiro, entre as rampas do pavilhão. O trabalho fica em frente a um mural de retratos do abolicionista americano Frederick Douglass, que fez da própria imagem de negro livre, alinhado e bem vestido, um manifesto pelo fim da escravidão.

O abismo entre brancos e negros parece sublinhar o alto contraste entre preto e branco de quase todas as obras. Se existem as sombras de Regina Silveira e os vulcões de Carmela Gross, há ainda o corpo negro de Zózimo Bulbul que se agita contra um fundo branco em seu filme “Alma no Olho”. É o negro dissecado ali como carne —dentes, cabelos, ombros, mamilos, pés, axilas.

Mulheres negras também se transformam em estranhas bonecas articuladas nas colagens da norueguesa Frida Orupabo. Elas viram instrumento maleável nesses retratos que mais desancam que favorecem o retratado, são antibustos arquitetados pela dor.

É nessa secura, no preto e no branco, no fogo e nas cinzas, que a atual Bienal mostra sua altíssima temperatura em relação aos tempos da peste, uma reação sóbria, talvez resignada diante da tragédia.

Uma quase não obra ilustra bem isso —na contramão do resgate do meteorito do Museu Nacional e outros gestos inúteis de reparação, a colombiana Gala Porras-Kim sugere, numa carta à instituição, que sejam incinerados os restos da múmia Luzia em vez da vã tentativa de reconstruir agora seu corpo para exposição.

É o plano de ação e luto para nossos tempos intragáveis.

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Inhotim renasce com Brumadinho, da lama aos outdoors e playgrounds https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/inhotim-renasce-com-brumadinho-da-lama-aos-outdoors-e-playgrounds/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2021/09/03/inhotim-renasce-com-brumadinho-da-lama-aos-outdoors-e-playgrounds/#respond Fri, 03 Sep 2021 14:10:27 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2021/09/koch2-320x213.jpg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2834 Uma pequena cruz branca descansa à sombra das letras de cimento pintadas da mesma cor. Brumadinho, a simplória palavra-escultura no trevo de entrada da cidadezinha mineira, parece desafiar com sua brancura o vermelho do barro que engoliu tudo e deixou um rastro de mortos ali há quase três anos.

Desafia também o mais novo e estranho elemento da paisagem. De frente para o letreiro, um outdoor imenso mostra o interior de uma caixa de papelão vazia e esvaziada de cor, só o monótono pardo do papel e algo de verde que entra por buracos e fendas de sua estrutura, como janelas para a natureza do lugar —na verdade a grama do terraço da casa da artista em São Paulo.

Lucia Koch, a autora de uma série de placas gigantes agora espalhadas pelo povoado, reage com sua antipropaganda ao torto renascimento de uma cidade arrasada, ou a todas as suas vidas reviradas de lama e miséria, nas palavras dela.

Brumadinho, todos sabem, já não era lembrada havia tempos como um polo de extração de minério quando a barragem da mina Córrego do Feijão cedeu e mergulhou tudo num mar tóxico de barro. Estava firme no mapa como um dos destinos mais queridos do povo artsy, lar do Instituto Inhotim, o megamuseu de arte contemporânea nascido dos delírios do empresário Bernardo Paz, dono, não espanta, de uma mineradora.

Tudo, aliás, se retroalimenta na dinâmica Inhotim-Brumadinho. A Vale, empresa responsável pela estrutura que rompeu, é a grande patrocinadora do museu que se tornou o maior empregador da cidade e uma espécie de atalho rumo ao futuro em tempos de pandemia e catástrofe econômica. Mas não seria exagerado pensar que muitos dos jardineiros ou garotos e garotas que ziguezagueiam todo dia conduzindo visitantes em carrinhos de golfe aos pavilhões faraônicos do parque tenham perdido um parente ou amigo naquela tragédia.

Inhotim também já viveu dias melhores. Um ano depois do colapso da barragem, veio a pandemia, que forçou a paralisação das visitas e exposições por meses a perder de vista. Houve ainda a ameaça de liquidação das obras por causa de uma dívida bilionária de Paz com o governo, só agora em vias de pagamento.

Obra de Lucia Koch instalada em Brumadinho (MG)

O dinheiro enfim irriga também a cidadezinha à sombra do grande museu, com a chegada de indenizações pagas pela Vale. No rastro da tragédia, surgiram primeiro pichações nos muros dizendo que a “Vale não vale nada” e depois outdoors anunciando novos mercados, empreiteiras, condomínios, cursos de informática, piscinas pré-fabricadas, firmas de advocacia, lojas de móveis e também funerárias.

Os outdoors de Lucia Koch, nesse sentido, rebatem a pujança alcançada oferecendo o vazio arquitetônico, da caixa de papelão a queijeiras fotografadas por dentro que mais lembram pavilhões modernistas ou um simples saco de carvão que ganha ares de caverna enlameada pairando sobre a cidade cansada dessa cor.

Esses mesmos anúncios que em Brumadinho dividem o espaço com a propaganda real, diário de um novo fluxo financeiro, ressurgem nas galerias imaculadas do Inhotim e coroando ilhotas nos lagos tingidos de turquesa radioativo.

Obra de Lucia Koch instalada na península do Instituto Inhotim

Koch vem fotografando e ampliando o interior de embalagens há mais de três décadas, numa reflexão sobre o que fica na ausência de um objeto, uma memória tangível. Nesse ponto, sua nova série não parece tão nova, mas ganha em ambição ao romper uma espécie de barreira erguida entre o pacato povoado lá fora e a Disneylândia reluzente dos entendedores de arte.

Não por acaso, Douglas de Freitas, diretor artístico à frente de uma nova leva de inaugurações que marcam a retomada da instituição num ensaio de pós-pandemia, vem fazendo questão de dizer que tudo se ancora no território.

Seria o território de terra vermelha e certa dor latente que pisamos aqui, mas também outros territórios asfixiados pelo trânsito frenético ao redor, caso do Mediterrâneo que surge nos desenhos da polonesa Aleksandra Mir, ou resquícios de arquiteturas, de escolas a templos religiosos, transformados em playground por Rommulo Vieira Conceição num dos jardins.

‘O Espaço Físico Pode Ser um Lugar Abstrato, Complexo e em Construção’, obra de Rommulo Vieira Conceição no Instituto Inhotim

Os tons berrantes das estruturas metálicas que o artista construiu no gramado dissolvem o impacto bruto das referências a templos cristãos e muçulmanos ali. Esses fantasmas do ambiente construído nas cidades, traços de abismos ideológicos muitas vezes intransponíveis, convivem com andaimes e grades afiadas. Seriam uma possível alusão a nossas cidades cada vez mais hostis, de condomínios que se vendem com varanda gourmet a pedras debaixo dos viadutos para espantar o repouso de moradores de rua.

Noutro território não mais solar que domina todas as paredes de uma galeria, Aleksandra Mir partiu de sua experiência vivendo no arquipélago italiano da Sicília para povoar suas praias com vítimas de sonhos ambíguos beirando pesadelos, de veranistas desiludidos a ondas de migrantes, todos assolados pela crise do clima, o esfacelamento político, o amor que chegou ao fim.

Seus desenhos em branco e preto, de traços que perdem a força à medida que a tinta da caneta vai se esgotando, são o reflexo engasgado de um mundo que rasteja. Nada mais parece valer a pena num paraíso que pode se revelar a porta do inferno sem retorno.

O atlas apocalíptico de Mir, da mesma forma que a propaganda esvaziada de Lucia Koch e o playground ao mesmo tempo alegre e sinistro de Rommulo Vieira Conceição, mapeia um estado de coração partido, dor de cabeça e derretimento nas ondas de calor.

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O som ao redor da Flip https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/07/29/o-som-ao-redor-da-flip/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/07/29/o-som-ao-redor-da-flip/#respond Sun, 29 Jul 2018 05:00:45 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/700869-work-320x213.jpeg https://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2827 Há coisas que se perdem na tradução, mas de repente houve um momento de nitidez. Bem na hora em que os alto-falantes tocavam os primeiros versos de “Psycho Killer” na festa de uma editora famosa no centro de Paraty, as luzes se apagaram e a ruazinha de pedras virou um breu, como se a lua gigante no céu sugasse toda a energia dali num blecaute cósmico.

Durou pouco a escuridão, mas o som das conversas soltas no ar, fofocas e confabulações ecoando entre os muros baixinhos do casario colonial, ganhou um vulto maior. Os segredos se tornavam públicos, e amores e desavenças viravam roupa estendida no varal naqueles raros minutos de silêncio.

Cidade de Paraty na Flip-2017

Vir à festa da literatura nesse balneário parado no tempo e no meio do caminho entre as duas maiores metrópoles do país pode ser um exercício um tanto nostálgico. Vi rostos que não via há tempos, lembranças boas e más afloraram sem cerimônia. Tudo aqui parece tremer numa frequência estranha.

Mas essa tal Flip é um espetáculo estranho mesmo. Multidões abarrotam uma tenda no coração da cidade ou se sentam diante de um telão para ver escritores de carne e osso descarnar suas palavras, gente que fala do indizível e coisas afins.

Os sons de latinhas de cerveja abrindo aqui e ali engrossam a trilha sonora, transformando uma praça ainda cheia de bandeirinhas juninas numa espécie de boteco expandido noite adentro. E o povo bebendo diante das imagens de escritores famosos parece até inebriado pelas palavras que lançam ao vento.

Há ainda os que fogem do circo para se afogar em garrafas de vinho rosé ao longo de tardes infinitas nos quintais da cidade ou que lotaram barcos atracados na baía para ver um breve eclipse lunar. Mas tanto essa turma mais blasé quanto os fãs dos escritores parecem estar aqui pedindo contato com algo além, querendo ouvir até o português falado nas tendas como espantosa língua estrangeira.

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O açougue das trevas de Chaim Soutine https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/29/o-acougue-das-trevas-de-chaim-soutine/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/29/o-acougue-das-trevas-de-chaim-soutine/#respond Tue, 29 May 2018 20:00:32 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/plastico_soutine-320x213.jpg http://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2813 Os frangos e patos depenados, coelhos assados e carcaças de boi das telas de Chaim Soutine dão outro peso à ideia de natureza-morta. Seria, no caso, uma natureza quase viva, já que esse expressionista russo radicado no seio da vanguarda parisiense gostava de pintar seus bichos ainda agonizando ou reavivados com baldes de sangue fresco que guardava em seu ateliê.

Uma mostra agora no Jewish Museum, no Upper East Side nova-iorquino, reúne só essas telas em que Soutine parece ter se esforçado para retratar, na pele dos animais, o momento em que a vida termina. Não fosse o aspecto corriqueiro de carcaças e frangos pendurados em açougues, suas telas poderiam até chocar os mais sensíveis, mas são belos exercícios de gesto e cor.

Ou algo visceral. Esse termo que críticos ao longo da história da arte sempre gostaram de usar para descrever telas de gestual errático e contundente, em especial na tradição expressionista, aqui parece ganhar contornos literais. Tem a ver com a força dramática de uma composição, tanto pelo que retrata quanto pela forma como foi construída, e não faltam anedotas sobre os métodos de Soutine para sustentar toda a gama de conotações dessa palavra.

Seu ateliê era alvo constante de reclamações de vizinhos e visitas da polícia por causa do mau cheiro das carcaças em decomposição penduradas lá dentro. Soutine dizia não poder pintar de memória ou a partir de estudos e se sentava diante dos animais em putrefação para criar as suas telas. Seria macabro se não fossem animais.

É talvez nesse ponto, no entanto, que seus bichos mortos transcendem sua qualidade banal. Soutine transforma em espetáculo brutal e feérico a mais insignificante das mortes, fazendo pensar na própria existência como algo frágil e não menos banal caso seres humanos não pudessem fabricar a própria mitologia e se vangloriar dela. Seu açougue bárbaro é o carnaval das trevas da nossa passagem pelo plano terreno.

Lembra, em sua crueza, outras obras que tentaram retratar o peso trágico da morte, só que humana. No mesmo horizonte visual, estariam o Cristo de Andrea Mantegna ou a série de Flávio de Carvalho sobre a morte de sua mãe. Mas também não pude deixar de pensar em Théodore Géricault, famoso pelo monumental “Bote da Medusa” do Louvre, e que ao longo da vida foi um exímio retratista de cadáveres.

Soutine, mesmo ao se distanciar da forma humana na série das carnes, não deixa esquecer que todos somos bichos e chega a remover a sensação de culpa que sentimos ao apreciar seu circo da morte.

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A propaganda e a fraude em Jeff Koons https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/15/a-propaganda-e-a-fraude-em-jeff-koons/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/15/a-propaganda-e-a-fraude-em-jeff-koons/#respond Tue, 15 May 2018 20:05:05 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/plastico_koons-320x213.jpg http://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2794 Jatos de leite e suco de fruta, lábios lustrosos e cabelos idem povoam as novas telas de Jeff Koons. Os clichês da publicidade que vende sonhos de consumo nunca brilharam tanto nas telas do artista famoso por esculturas imensas de cachorrinhos metálicos e outras obras espalhafatosas. Desde que surgiu, o americano vem dissecando a anatomia da propaganda, expondo os mecanismos e estratégias por trás de tudo feito para vender no país mais rico do mundo.

Herdeiro conceitual de Andy Warhol, Koons sempre foi avesso à profundidade real ou fajuta em seus trabalhos. Seu discurso, quase de vendedor, é que suas obras refletem nada mais que aquilo que retratam numa superfície reluzente, dos corpos rechonchudos de seus cãezinhos de aço inoxidável a telas que lembram impressões de outdoor, de tão discretas as pinceladas e os gestos. É como se Koons refletisse o pior do mundo no mais raso e vápido dos traços.

O homem que chamou de reflexão sobre o amor uma série de autorretratos em que aparece transando com sua ex-mulher, a estrela pornô italiana Cicciolina, acaba de mostrar numa das filiais da Gagosian, em Nova York, uma série de megapinturas em que produtos feitos para as massas são representados como fotogramas congelados do clímax de seus comerciais, os cabelos ao vento do anúncio de xampu, uma cascata de suco de laranja, lábios tingidos de batom cor de sangue, fatias de mortadela com sorrisos de mostarda.

Mas enquanto os clichês se avolumam na galeria, engolindo o público num turbilhão de imagens com o mesmo efeito de zapear por canais estridentes de televisão, um protesto mais silencioso corre por fora. Koons e a mais rentável de suas galerias, a Gagosian, agora são alvo de processos nos Estados Unidos por ludibriar colecionadores. O artista, como muitos comerciais, promete, mas às vezes não entrega.

Um comprador de suas obras cansou dos atrasos e acusa artista e galeria de usar pagamentos adiantados para quitar dívidas e juros passados em vez de financiar a produção caríssima dessas obras, resultando em atrasos de meses ou anos na entrega de trabalhos com preços que podem chegar a dezenas de milhões de dólares.

Toda a aura mística em torno de produtos banais que Koons sempre se esforçou para registrar e atacar, quando não enaltecer, em seus trabalhos agora parece ter se voltado contra a própria lógica de seu ateliê-fábrica onde dezenas de assistentes trabalham em esquema de linha de montagem para entregar suas criações a colecionadores ao redor do globo. Koons, como Warhol, virou uma celebridade, mas, ao contrário do ídolo da arte pop, pode ter acreditado demais na fama.

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Frieze em NY lidera semana de feiras da primavera e venda do século na Christie’s https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/02/frieze-em-ny-lidera-semana-de-feiras-da-primavera-e-venda-do-seculo-na-christies/ https://plastico.blogfolha.uol.com.br/2018/05/02/frieze-em-ny-lidera-semana-de-feiras-da-primavera-e-venda-do-seculo-na-christies/#respond Wed, 02 May 2018 17:00:25 +0000 https://plastico.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/plastico_frieze-320x213.jpg http://plastico.blogfolha.uol.com.br/?p=2786 É a segunda onda. Depois das feiras de março, com a cidade ainda numa chave de braço polar, vêm a primavera e as feiras de maio. Muito se especulou sobre uma suposta crise da Frieze New York, o braço americano do megaevento britânico, mas ela deu um upgrade na tenda que monta todo no na Randall’s Island, um pedaço de terra no meio do rio East ao lado do velho Spanish Harlem, e parece estar reagindo.

Um sinal, pelo menos para o mercado latino-americano, é a inversão do jogo. Dois anos atrás, com a crise corroendo o faturamento das galerias brasileiras e a Armory Show, a maior feira nova-iorquina, tentando se reinventar, as casas gigantes paulistanas e uma ou outra carioca mais aventureira trocou a Frieze pela rival. Neste ano, depois que a Armory abriu na ressaca de um escândalo de assédio sexual que levou à troca de comando da feira, o caso é outro —a feira dos píeres sobre o Hudson teve só uma galeria do país, a Nara Roesler, enquanto a Frieze abre as portas com oito delas.

Estão lá Fortes, D’Aloia & Gabriel, Mendes Wood DM e Nara Roesler, três casas que aos poucos vêm destronando todas as outras para se estabelecer no topo do mercado brasileiro, e nomes fortes, como Vermelho e A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro. Enquanto a Dan, galeria mais conhecida por vender arte moderna e peças do chamado mercado secundário, faz sua estreia na feira, a Frieze esse ano tem uma ausência notável —a Casa Triângulo, que esteve em quase todas as edições do evento que começou há seis anos, não fez a viagem.

Outra casa que vem se firmando no panteão das galerias de arte moderna, a Bergamin & Gomide também veio passar uma semana de vendas em Nova York, só que na Tefaf New York Spring, o evento americano da feira holandesa conhecida como playground dos ultrabilionários, que abarrotam o aeroporto de Maastricht com seus jatinhos para comprar tudo, de diamantes raros às ovelhas conservadas em formol de Damien Hirst.

Nessa mesma semana, outra feira que atravessou o Atlântico monta um entreposto em Manhattan. A 1:54, evento especializado em arte contemporânea africana que começou em Londres, traz mais uma série de galerias para a maior metrópole americana, onde os olhos do mercado há muito se voltam para artistas da chamada diáspora africana, um dos nomes que indústrias como o mercado da arte encontrou para batizar um histórico de racismo e escravidão.

Enquanto colecionadores zanzam por tendas e centros de convenção pela cidade, o mercado esquenta ainda mais. A Kurimanzutto, mais poderosa galeria mexicana, aproveita o buzz para abrir uma filial nova-iorquina, e aqueles com bolsos mais profundos aguardam alvoroçados pelos leilões da semana que vem, entre eles a chamada venda do século —a Christie’s vai fazer um saldão da coleção dos Rockefeller, conjunto de 2.000 obras que deve custar por baixo uns US$ 700 milhões.

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