ArtRio reflete climão do 7 de Setembro e vende obras que espelham a nossa crise
O pós-Sete de Setembro, vulgo nossa infernal vida política até as próximas eleições, caso aconteçam, foi o pano de fundo da feira. Quando a ArtRio abriu as portas na Marina da Glória, o verde e o amarelo ainda tremulavam em bandeiras nas varandas e janelas dos apartamentaços da avenida Atlântica em Copacabana.
Difícil dizer que o Rio de Janeiro continua lindo, embora seja verdade. Mas feiras, o nome já diz, são oferta de mercadoria, e as galerias precisam vender. Afinal, o quadro de colapso total que se instalou na economia tem poder multiplicado de destruição na esfera da cultura, coisa muito negligenciada pelo inquilino do Alvorada, que o diga o esfacelamento da Lei Rouanet.
Na contramão de um mundo da arte que fechou as portas na pandemia, a ArtRio, segundo maior evento dessa natureza no país, depois da paulistana SP-Arte, realiza agora sua segunda edição pandêmica. Nem no auge da crise e sem vacinas, a feira carioca parou, embora tenha feito uma edição menor no ano passado.
O elenco de galerias agora cresceu, mas segue um tanto tímido, sem pesos-pesados nacionais, como as casas Bergamin & Gomide, Luisa Strina e A Gentil Carioca, e medalhões estrangeiros —todos os players aqui são brasileiros, a não ser a italiana Continua, que tem uma sede em São Paulo.
Há muito de mais do mesmo. Galerias que operam no chamado mercado secundário, em geral vendendo inventários de coleções desfeitas ou facilitando a troca de mãos de peças de arte moderna, comparecem com alguns tesouros, mas nada assim espantoso.
Na Almeida e Dale, há um belíssimo painel do suíço John Graz, modernista que se radicou em São Paulo, um dos motores da Semana de 22 que agora parece mais cobiçado do que nunca às vésperas do centenário daquela festa no Theatro Municipal paulistano.
Na mesma toada, têm forte presença na feira artistas como Ismael Nery e Vicente do Rego Monteiro, faróis do nosso modernismo fora do eixo Rio-São Paulo, alvos, aliás, de uma mostra que repensa as origens e o legado da Semana de 22 agora no Museu de Arte Moderna paulistano.
O marchand Paulo Kuczynski tem também algumas joias, uma pintura-instalação de Wesley Duke Lee em que um serrote atravessa duas imagens de uma mulher, além de uma escultura do britânico Henry Moore e uma bela abstração da portuguesa Maria Helena Vieira da Silva.
Ecos longínquos do nosso pesadelo atual também surgem aqui e ali. Mais de uma galeria na ArtRio tem à venda trabalhos de Antônio Henrique Amaral, que alegorizou nossa ditadura com pinturas de bananas, algumas verdes, outras maduras. Na época, os censores pensaram ser simples naturezas-mortas.
Na galeria Movimento, trabalhos de Xico Chaves, da década de 1990, também refletem um caos que nunca sai de cena. Suas garrafas plásticas pretas, cheias de areia recolhida em Brasília, trazem estampadas as palavras “força oculta”, um diagnóstico de que nada ia bem no Planalto talvez desde a sua construção.
Mas a novidade se dá na aparição de alguns novos nomes, em especial na esteira da recém-aberta Bienal de São Paulo, com presença recorde de artistas indígenas. A galeria Millan, por exemplo, tem uma tela de Jaider Esbell, nome central desta edição da mostra paulistana e figura por trás de uma coletiva que também acaba de abrir as portas no MAM.
Na galeria C., Uyra, uma performer também escalada pela atual Bienal que vem se destacando com ações em que parasita cenários de destruição ambiental, mostra uma série de trabalhos em preto e branco, bem diferentes dos ultracoloridos agora em São Paulo.
(Vale dizer que artistas históricos e consagrados da mostra do Ibirapuera dão as caras na ArtRio, de Antonio Dias, em várias galerias, a Carmela Gross, na Vermelho, passando pelo mais jovem Paulo Nazareth, na Mendes Wood DM.)
Já outro nome da novíssima geração é Bastardo, com duas pinturas à mostra na Casa Triângulo. O artista, que vem conquistando espaço com retratos de uma negritude néon afiliada ao rap ostentação, é dos mais interessantes nessa leva de autores que desponta no circuito —uma individual dele está marcada para novembro em São Paulo.
Outro jovem artista, Adriel Visoto domina o espaço da galeria paulistana Verve. São pinturas de escala mínima, muitas refletindo a solidão e o isolamento forçado da pandemia, assunto da ordem do dia. Talvez por isso, tenham despertado a atenção do Museu de Arte do Rio, que reservou várias das peças na abertura.
Mesmo na melancolia, parece haver um respiro. Longe das obras, no bar montado com vista para o mar e a pista do aeroporto Santos Dumont, o pôr do sol é um escândalo violeta. Artistas e colecionadores, quase sempre de máscara, a não ser para tomar um gole de espumante, confabulavam como antes. O mundo da arte parece, aos trancos e barrancos, estar voltando —à sombra do verde e do amarelo.