História pilhada e à venda em Nova York

Silas Martí

No meio das galerias de arte ultracontemporânea do Chelsea, em Manhattan, uma mostra de coisas antigas chama a atenção. A Luhring Augustine, que já montou uma bela mostra de Willys de Castro, agora tem uma seleção de arte medieval. Entre as peças anunciadas como os últimos exemplares de trabalhos desse calibre ainda em mãos privadas, estão pedaços de um arco da Catedral de Canterbury, construída no século 15 no Reino Unido, um vitral de uma igreja francesa do século 16, a escultura de um Cristo crucificado da Espanha do século 14 e por aí afora.

É um recorte que destoa dos looks modernosos do povo artsy que circula por essas ruas. E causa um ruído num cenário que está sempre atrás do último grito da última moda do artista mais jovem e mais descolado que foi desbravar mais um canto distante do Brooklyn.

Na mesma mostra, um desenho de uma das torres da Catedral de Rouen, aquela que Monet pintou à exaustão numa das séries fundadoras do impressionismo, espanta pela beleza dos detalhes. É talvez dos poucos trabalhos que façam sentido fora de contexto. Mas isso faz pensar sobre todo o resto da mostra, com peças que parecem roubadas de uma igreja, de um altar perdido e distante no tempo.

Os pedaços do arco de Canterbury talhados em pedra calcária sugerem mais violência do que beleza, a ruína pilhada num pedestal, como os frisos tristes do Partenon grego levados para Londres ou os sarcófagos egípcios amontoados nas galerias do Metropolitan aqui. É o fetiche em seu grau máximo, no mínimo algo para despertar conversas em casas de colecionadores bilionários.

Esse estranho relicário numa galeria comercial faz lembrar um gesto semelhante, com significado oposto, no Guggenheim. Numa das mostras mais potentes agora em cartaz na cidade, o artista vietnamita Dahn Vo espalhou pelas rampas em espiral outros objetos históricos arrematados em leilão e depois violentados por ele. Estão lá restos das poltronas do escritório do presidente assassinado John Kennedy, estátuas gregas cortadas em pedacinhos para caber em caixas tamanho padrão enviadas pelo correio e outras barbaridades cometidas contra obras do passado em nome da estética do presente.

Num canto da mostra do Guggenheim, Vo deixou uma cabeça de serpente asteca com um enorme corte à mostra. Dessa vez, ele não foi o autor da intervenção. Essa estátua fora um presente do governo mexicano aos Estados Unidos que então fez caber o artefato num de seus prédios dessa maneira, arrancando um pedaço.

Enquanto Vo, um dos artistas mais brilhantes do cenário atual, constrói um enorme monumento ao descaso e à violência em relação à memória, a Luhring Augustine seduz olhares estafados da contemporaneidade com migalhas de uma história gloriosa, mas despedaçada e disposta para o consumo de seus colecionadores. São dois lados da voracidade do mercado em atrito.