Do baile de favela à capa da Vogue, Jota e Elian Almeida reinventam a negritude
Não só a pintura não morreu, como está em curso uma avalanche de trabalhos figurativos, desbancando a agora velha abstração. A nova produção é tanta que as galerias parecem estar vendendo telas com tinta ainda fresca, num fluxo-relâmpago do ateliê para a casa dos colecionadores.
Nesse embalo, junto de uma necessária revisão de valores que sempre fecharam as portas do circuito para artistas fora do cânone —ou seja, todos que não são homens brancos heterossexuais—, novos nomes despontam e retratam aquilo que até agora era difícil encontrar com tal frescor e autenticidade nos cubos brancos.
Na temporada que começou com a ArtRio no início do mês, dois artistas chamam a atenção. Jota, talvez mais conhecido por seu perfil Explícito no Instagram, e Elian Almeida são dois jovens negros que tratam da negritude em seus trabalhos. As estratégias, no entanto, são bem distintas.
Explícito, no caso de Jota, é seu olhar para a vida do morro. Suas telas são flagras do melhor e do pior das favelas cariocas, dos bailes às balas perdidas, da cerveja no boteco ao cadáver enrolado no lençol.
Suas obras, quase 30 telas no total, lotam o MT Atelier, espaço num casarão do centro do Rio de Janeiro junto de botequins e antiquários. O traço é irregular —algumas telas são mais realistas, outras esbarram na caricatura, com pouco apreço por escala e regras clássicas de composição. A pincelada é rápida, como se traduzisse no imediatismo a urgência de mostrar a vida como ela é.
Ou seria a vida como nós, distantes do morro, imaginamos que ela seja? O olhar que torna exóticas as cenas prosaicas da favela é todo meu, mas parece corresponder também a uma demanda crescente de mercado, o desejo de ter essas visões, calcadas na exuberância pop do baile de favela, na prateleira para exposição e venda.
Já vimos isso antes, com o trabalho fortíssimo de Maxwell Alexandre, artista da Rocinha, ou mesmo nas performances de Paulo Nazareth, que levantou o ponto de sua própria imagem ser vendável e exótica quando posou com uma Kombi cheia de bananas na feira Art Basel Miami Beach.
Ocorre agora talvez um amadurecimento desse retrato da vida como ela é por quem de fato vive essa tal vida, não o forasteiro que a investiga. Jota, nascido em Honório Gurgel, o mesmo bairro da zona norte carioca onde nasceu Anitta, está longe de encarnar os estereótipos de “Girl from Rio”.
Suas pinturas têm uma acidez viva. Os poucos brancos nas telas surgem apavorados por rapazes negros ou em franca atitude racista, xingando de dentro de um carro. Policiais rondam muitas das cenas, da mais banal em que fardados de metralhadora em punho seguem com os olhos um garoto estiloso desfilar pela favela à trágica imagem de um velho levando uma criança baleada, o sangue ainda jorrando vermelho, num carrinho de mão.
Jota é um construtor de alegorias eficazes, mas pairam dúvidas —suas telas se equilibram entre o lamento e a exaltação, e esse é o ponto que torna a leitura mais desafiadora.
Essa inquietação só desaparece nas obras que vejo como ponto alto da mostra, os retratos isolados, já desvencilhados da lógica de flagra do morro, em que jovens contra um fundo neutro são retratados em poses que lembram editoriais de moda, ecos do rap ostentação de um lado, como o rapaz descamisado que escancara um enorme sorriso de dentes de ouro, e um aceno a arquétipos de um realismo socialista, como o rapaz que verte uma lágrima —os “Retirantes”, de Portinari, vêm à mente— e traz estampado no peito um crachá que diz “exausto”.
O gesto de Elian Almeida, que ocupa todo o espaço da galeria Nara Roesler, em Ipanema, talvez também tenha partido da exaustão. Pintar de preto todas as capas da Vogue dispostas numa parede, no caso, canaliza a fúria de não ver o próprio rosto —ou qualquer rosto negro— nos espaços simbólicos de luxo e poder, como a tradicional revista de moda.
E a moda que se insinua nos retratos de Jota parece fazer a ponte com a subversão da ideia de glamour nas obras de Almeida. O projeto deste último, no entanto, se distancia da lógica da ostentação. Os seus são retratos de mulheres ativistas negras, tantas vezes esquecidas ou silenciadas, que ressurgem ainda sem rosto em capas imaginárias da Vogue.
Lá estão Conceição Evaristo, Lélia Gonzalez, Ruth de Souza, entre outras. Elas posam dignas, sentadas à moda do retrato clássico, mas têm uma mancha opaca no lugar do rosto, um borrão negro como se a identidade não coubesse na moldura rígida da revista.
Almeida cuida dos detalhes, o acabamento dos tecidos, os azulejos atrás da retratada, as plantas do cenário, mas os rostos são ausentes como sempre estiveram nessas publicações e também no circuito da arte.
O contraste entre suas modelos sem rosto posando como figuras monárquicas nas telas em grande formato e as revistas reais apagadas à força mostra que o mundo imaginado por Almeida, em que essas figuras ali estariam retratadas com pompa, não é possível sem certo grau de violência.
Uma velha ordem precisa sair de cena, às vezes expulsa mesmo, para que outra se estabeleça, mas os rostos só se fixam com o tempo, não vêm com a nitidez de uma fotografia nem dependem dos truques de maquiagem e Photoshop.